PRORROGAMOS! Assine a partir de 1,50/semana

O alerta que a pena histórica de Daniel Alves traz a jogadores de futebol

Condenação explicita que famosos não são impunes, boleiros precisam seguir regras, e cabe às mulheres decidir o que fazer em relacionamentos com os homens

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 09h21 - Publicado em 23 fev 2024, 06h00

A agressão e a mentira custaram caro ao jogador de futebol Daniel Alves. Na quinta-feira, 22, ele foi condenado a cumprir pena de quatro anos e meio de cadeia em regime fechado e a pagar uma indenização de 150 000 euros (802 000 reais) — pagos, aliás, com a ajuda de Neymar e seu pai — por estupro de uma jovem de 23 anos no banheiro de uma boate luxuosa de Barcelona, na Espanha, a Sutton. O Ministério Público espanhol havia pedido nove anos de pena. A acusação indicava doze anos. Na decisão, o tribunal considerou provada a agressão sexual sem consentimento, com penetração vaginal. O julgamento foi realizado durante três dias, no início de fevereiro, numa das salas do Tribunal Provincial da cidade catalã. O atleta — preso há pouco mais de um ano e nome cobiçado para os rachas no pátio — foi diariamente escoltado por policiais em meio a corredores alternativos. A ideia era escapar da curiosidade dos flashes de fotógrafos e câmeras de televisão.

Sentou-se, a cada manhã e tarde das audições, diante dos magistrados alocados num conjunto de mesas em forma de U — espaço sem pompa, de luz fria, com jeitão de serviço público. Ele daria seu depoimento no primeiro dia de sessões, mas a advogada que o acompanha conseguiu adiá-lo para a terceira e derradeira rodada — ideia que o ajudaria no tom de algumas das respostas, mas que de nada adiantou. A vítima foi protegida por um biombo, de modo a não cruzar o olhar com o réu e para preservar sua identidade, protegida a todo custo da ávida imprensa sensacionalista.

A CENA DA AGRESSÃO - A boate Sutton, em Barcelona, na Espanha: endereço de luxo, com camarotes privativos
A CENA DA AGRESSÃO - A boate Sutton, em Barcelona, na Espanha: endereço de luxo, com camarotes privativos (Europa Press/AP/Imageplus)

A pena é histórica e carrega um recado: famosos não são impunes, boleiros precisam seguir regras, e cabe às mulheres — e apenas a elas — decidir o que fazer em relacionamentos com os homens. Daniel Alves é agora um presidiário, já não mais em detenção preventiva, embora caiba recurso no Tribunal de Apelação. Virou sombra do veloz lateral-direito, recordista de títulos, que o técnico Tite levou para a Copa do Catar, em 2022, já com 39 anos de idade, veterano, tratando-o como exemplo para os companheiros. “Ele transcende o futebol, é muito mais do que jogar bola”, disse o treinador. Em 30 de dezembro, vinte dias depois da eliminação do Brasil para a Croácia, nos pênaltis, Daniel Alves foi com amigos para a casa noturna catalã, frequentada por esportistas, artistas e a alta roda. No setor VIP do estabelecimento, deu-se o crime que insistia em dizer não ter cometido. Depois da denúncia, não parou de disparar lorotas, uma atrás da outra, em tentativa de escapar do veredicto.

Ele mudou a versão do episódio cinco vezes, embaralhando o real e o imaginário. Antes de ser preso, disse para uma emissora de televisão que não conhecia a vítima. “Sinto muito, mas não sei quem é essa senhora”, afirmou. Depois, para a polícia, reconheceu ter entrado no banheiro com a moça, mas nada teria ocorrido. Na fabulação oficial de número 3, admitiu o sexo oral — e não havia como desmentir, visto a agredida ter oferecido detalhes de uma tatuagem muito próxima das partes genitais do algoz. Em seguida, finalmente reconheceu a relação sexual com penetração, mas supostamente acordada entre ambos. Alegou ter fugido da verdade para manter o casamento com a modelo Joana Sanz — como as coisas desandaram dentro de casa, jogou tudo às favas e foi defender a própria pele.

Continua após a publicidade
CORAGEM - Os movimentos feministas na cola do americano #MeToo, de 2017: fundamentais
CORAGEM - Os movimentos feministas na cola do americano #MeToo, de 2017: fundamentais (Spencer Platt/Getty Images)

Na quinta e derradeira invencionice, revelou ter feito tudo o que fez porque havia bebido muito. Havia uma estratégia nesse caminho: um dos artigos do Código Penal espanhol prevê atenuante caso haja “grave vício em bebidas alcoólicas, drogas ou outras substâncias que produzam efeitos análogos”. Orientada, a ex-companheira do jogador, Joana, foi clara diante da juíza: “Ele foi comer com amigos no restaurante. Passou o dia e voltou eram quase 4 da manhã. Voltou muito bêbado, fedendo a álcool. Bateu no armário e caiu na cama”. Não colou. Em sua oitiva, como derradeira tentativa de escapar das grades, Daniel Alves, com voz calma e pausada, resumiu a história toda a um encontro consensual. “Não sou um homem violento, nem sequer a agarrei pelos cabelos […] estávamos gostando”. Em outro momento, desceu a detalhes. “Ela não se apoiou na pia, não me disse que queria ir embora, eu não dei um tapa nela, não a agarrei pelos cabelos e a joguei no chão.” As negativas, tal qual as da mulher naquela noite, não foram acatadas. O futuro de Daniel Alves agora será traçado entre quatro paredes. De fato, ele transcende — e como — o futebol.

Por ora, dada a decisão anunciada, Daniel Alves é culpado, e, sabendo-se detalhes do que ocorreu na véspera do réveillon na Sutton, muito dificilmente escaparia da espada da Justiça. Deve-­se levar em conta, contudo, que ele foi encurralado em virtude de um saudável movimento da sociedade. Em agosto de 2022, a Espanha aprovou uma lei logo apelidada de “Só Sim é Sim”, segundo a qual toda interação sexual exige consentimento claríssimo, com as vontades expressadas de forma livre, voluntária e clara. A norma ganhou relevo e foi aprovada, depois de um crime sexual de 2016 contra uma jovem de 18 anos. A garota foi abusada por cinco homens que, em um grupo de WhatsApp, se intitulava “La Manada”. As autoridades legais consideraram ter havido apenas crime de abuso sexual, e não estupro, que resultaria em pena maior. Uma onda de protestos mudou a prosa. Daniel Alves foi, portanto, o primeiro a ser condenado pela nova letra.

Continua após a publicidade
FEIO - Jenni Hermoso, depois do indecoroso beijo de Rubiales: “Eu não mereço”
FEIO - Jenni Hermoso, depois do indecoroso beijo de Rubiales: “Eu não mereço” (Noemi Llamas/Eurasia Sport Images/Getty Images)

A prisão preventiva do boleiro, no início de 2023, inspirou projeto semelhante no Brasil. Inicialmente, bares e endereços de baladas adotaram seus próprios protocolos de controle, com rigor na entrada e uso de câmeras de vigilância. Campanhas foram divulgadas pela internet e pela televisão. No final do ano, o presidente Lula sancionou uma lei levada ao Congresso, com regras nítidas e punições rigorosas para os estabelecimentos que não cumprirem o determinado no papel. As medidas valem tanto para a proteção das clientes como das funcionárias. Trata-se do “Não é Não”, que passa a vigorar no segundo semestre. Um detalhe, porém, gerou reclamações. Ficaram fora da legislação, e portanto alheios aos minuciosos cuidados, as igrejas e templos religiosos — locais de intensa aglomeração e de onde surgiram, nos últimos anos, acusações de assédio sexual, inclusive contra menores de idade.

Não é possível ignorar, no entanto, que a maior parte dos crimes acontece em âmbito doméstico — e não em noites regadas a álcool e drogas, em camarotes escurinhos e banheiros tratados como se fossem palácios. De acordo com o mais recente relatório da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o ano de 2023 somou o maior número de denúncias de estupros desde que os dados começaram a ser registrados, em 2001. A maior parte deles, 73%, aconteceu dentro de casa. “Nas últimas duas décadas nós nomeamos o feminicídio, começamos a falar da violência contra mulheres, do assédio de homens famosos, de estupro no casamento”, afirma a antropóloga, professora e pesquisadora Debora Diniz. “Mas a punição é o fim da linha, quando tudo já deu errado. O que precisamos, agora, é prevenção, mulheres que saibam identificar relações violentas e homens que rompam com essa estrutura e combatam essas agressões.” A estrada é longa, ainda.

Continua após a publicidade

Há o caminho legal — e louve-se, com fanfarra, a pioneira e brasileiríssima Lei Maria da Penha, de 2006, mecanismo de proteção contra mulheres vítimas de violência doméstica. Mas é sempre bom apoiar com estardalhaço, dada a força para iluminar o absurdo, movimentos que condenem os abusos, passo anterior aos avanços nos poderes Legislativo e Executivo. O mais conhecido deles é o #MeToo americano, nascido em 2017 entre as atrizes de Hollywood depois das denúncias (comprovadas) de importunação de um executivo mandachuva e queridinho, Harvey Weinstein. O #MeToo ecoou pelo mundo, inclusive no Brasil, e ainda gera filhotes. “Punições como a de Daniel Alves são uma forma de demonstrar que homens ricos e poderosos não ficarão impunes”, diz a advogada e diretora do Me Too Brasil, Luciana Terra.

PRESSÃO - Robinho: condenado na Itália, pode ter de cumprir pena no Brasil
PRESSÃO – Robinho: condenado na Itália, pode ter de cumprir pena no Brasil (Dani Pozo/AFP)

A condenação de Daniel Alves joga pressão para cima de um outro personagem do mundo da bola: Robinho, ex-atacante do Santos e da seleção, condenado em segunda instância na Itália a nove anos de prisão por estupro coletivo. Robinho e Daniel Alves, assim como outros jogares de sucesso no Brasil, extrapolaram os limites porque se sentem realezas, tratados como seres especiais a quem as regras não se aplicam. Habilidosos num esporte que paga bem, acumulam fortunas e puxa-sacos, “os parças”, que os levam para noites extravagantes e orgias regadas a álcool. Longe da disciplina e do trabalho árduo, não raro, eles deixam de alcançar em campo tudo o que poderiam (o novo jejum de Copas da seleção brasileira é apenas um aspecto desse fenômeno). Na pior versão, cometem crimes, especialmente contra as mulheres. O caso de Robinho deve ser julgado ainda este ano pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte definirá se o ex-atleta cumprirá a pena no Brasil ou permanecerá leve e faceiro, em Santos, como se nada houvesse.

Continua após a publicidade

Aos poucos, jogadores e cidadãos aprendem, na marra, à base de prisões e multas, a conviver com o outro, a lidar com uma vida que não lhes pertence, com educação e respeito. Daniel Alves será para sempre símbolo negativo dessa reviravolta, marco do espírito de nosso tempo. Não por acaso, e com carradas de razão, o cartola Luis Rubiales foi afastado da Federação Espanhola de Futebol e suspenso de qualquer atividade ligada ao esporte depois de beijar na boca, sem autorização, a jogadora de futebol Jenni Hermoso, durante a comemoração do título da Copa do Mundo feminina, realizada ano passado. Disse Hermoso, acuada: “Eu não mereço estar vivendo tudo isso. Por que tenho que estar chorando em casa se não fiz nada?”. É o que ocorre com as vítimas de Daniel Alves e Robinho. Direto ao ponto: só o sim é sim e o não é não.

Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881

Publicidade


Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.