A presença de Tifanny Abreu, ponteira do Vôlei Bauru e primeira trans a atuar na Superliga Feminina de vôlei, continua causando debates acalorados. No final do ano passado, a ex-jogadora da seleção brasileira, Ana Paula Henkel, posicionou-se em sua rede social contra a liberação de Tifanny pela CBV (Confederação Brasileira de Vôlei). Esta semana, o técnico e comentarista de vôlei Cacá Bizzochi escreveu um artigo em seu blog, levantando outros pontos que deveriam ser discutidos a respeito da jogadora de 33 anos, que vem obtendo uma impressionante média de pontos na Superliga. Em ambos os casos, a discussão foi grande nas redes sociais, deixando o lado técnico e se concentrando no ideológico. O médico Paulo Zogaib, professor de medicina esportiva da Unifesp, coordenador da medicina esportiva do Esporte Clube Pinheiros, médico da GO! Saúde e Performance, Centro de Avaliação em Medicina Esportiva e um dos colunistas do blog Letra de Médico, de VEJA, falou sobre o assunto.
O senhor tem acompanhado o caso da Tifanny? O que acha das críticas em relação a ela disputar a Superliga? No caso dela, há um detalhe que faz um pouco de diferença, que é o fato dela ter feito a cirurgia já com 30 anos. Então, ela passou boa parte da vida com uma produção hormonal muito maior do que uma produção hormonal feminina. Isso acaba influenciando no tamanho dos órgãos, coração, pulmões, a parte óssea, ou seja, as alavancas do aparelho locomotor. Então, isso cria diferenças em relação às mulheres e faz com que ela tenha um desempenho melhor. Não é pura e simplesmente o controle de testosterona na circulação. Claro que isso é importante, mas ela passou 30 anos desenvolvendo o corpo de uma forma diferente de uma mulher. Ao fazer a operação e a terapia hormonal, ela vai reduzir, evidentemente, a concentração de testosterona e isso vai diminuir o poder anabólico. O rendimento diminuí, mas o fato é que ela já teve essa vantagem durante estes 30 anos. Não quero entrar em aspecto ético, moral, politicamente correto ou incorreto, de inclusão ou não, não é este o caso. Só que fisiologicamente isso é um fato.
O nível de testosterona não seria o único fator determinante para indicar algum tipo de vantagem de um atleta trans no esporte? Sim. Houve um outro caso, de uma menina no interior de São Paulo, que também fez a operação, mas tinha 14 ou 15 anos. Nesse caso, não tem essa diferença tão grande, primeiro porque talvez ainda estivesse no meio da puberdade, ainda não tivesse definida a maturação sexual. É claro que esse menina não teve todas as vantagens que falei antes. O coração de um homem é maior que o coração de uma mulher. A quantidade de sangue que o homem tem é maior do que a da mulher. Isso é biológico. A Tifanny completou toda a maturação sexual, todos os órgãos dela se maturaram. Ela tem uma capacidade de transporte de oxigênio muito maior do que uma mulher, porque ela tem um coração maior e tem mais sangue do que uma mulher. Os pulmões são maiores, a própria estrutura do aparelho locomotor é diferente, a largura dos quadris, o tamanho dos ossos. Isso é o que diferencia um homem de uma mulher e por isso o desempenho físico do homem é maior do que o da mulher. Não é somente pela concentração de testosterona. Claro que com concentração maior o desempenho é maior. Por isso muitos se dopam e tomam anabolizantes – ou testosterona ou um esteroide anabólico – e melhora o desempenho. Mas não é só isso que determina o desempenho.
Poderia dar um exemplo? Vamos imaginar o Usain Bolt (jamaicano tricampeão olímpico nos 100 e 200 metros). Ele tem 1,95 m, tem todo o seu corpo desenvolvido. Se for tomar anabolizante, o desempenho dele vai ser muito melhor. Se não tomar, será inferior ao com doping, mas ele já tem um desenvolvimento natural. O fato de a Tifanny controlar a dosagem de testosterona diminui o desempenho dela, mas o coração vai continuar do mesmo tamanho, o pulmão também, os músculos, e assim por diante. Não se sei o COI levou em consideração essas coisas.
O que o senhor pensa sobre a regulamentação médica do COI para a liberação dos atletas trans? Um aspecto é importante, o da inclusão, de ter reconhecimento, poder exercer uma profissão que a pessoa queira, é a questão do livre arbítrio. Mas quando se trata de fatores biológicos, talvez a regulamentação tenha de ser revista, ser um pouco mais criteriosa. Um garoto que ainda não entrou na maturação sexual, na puberdade, tem pouca diferença para uma menina. Neste caso, não haveria vantagem sobre as mulheres. Em indivíduos mais velhos, em que já houve a maturação sexual completa, há vantagem sobre as meninas. Não sei exatamente como tratar disso, talvez limitar a idade para fazer a cirurgia, por exemplo, ou avaliar caso a caso. Quando se tem definido que o indivíduo é XY, um homem, ou é XX, uma mulher, nos dá uma definição maior. Mas há indivíduos XY que podem ter uma série de síndromes, uma série de alterações genéticas em que os receptores da testosterona têm uma sensibilidade muito pequena. Ele produz testosterona, mas não faz o mesmo efeito que faria num indivíduo que não tivesse essa síndrome. Pode ter até uma vagina com fundo falso, ter testículos no abdômen, uma série de fatores que interferem neste quadro. Não é tão simples falar que um homem virou mulher e pode competir. É preciso analisar o que aconteceu com este organismo ao longo do tempo. É uma questão bem complicada.
As estatísticas da Tifanny já mostram que só em três jogos da Superliga a média de pontos dela é a melhor do torneio. Isso já sinaliza que fisiologicamente ela leva vantagem sobre as outras atletas? Acho que é bastante evidente, nem precisaria de estatística. Se tivesse os dados fisiológicos dela, ver qual o seu consumo máximo de oxigênio, qual a potência anaeróbica, qual a impulsão vertical, etc., veríamos dados compatíveis com os parâmetros masculinos. Ela jogava na liga italiana masculina e se a compararmos a um ano atrás veremos que está mais fraca. Mesmo assim, estes parâmetros continuam sendo masculinos, ruins, mas masculino. Não tem como diminuir a massa cardíaca, a quantidade de sangue que ela tem, a capacidade de processamento do fígado. É inevitável. Parar de produzir testosterona ou inibir sua produção não vai desandar todo o organismo. A pessoa enfraquece, mas pouco. Do contrário, haveria até risco de morrer.
No que a comissão médica do COI se baseou para regulamentar a liberação? Acho que a questão social foi levada em conta e isso foi importante. É preciso incluir estas pessoas no esporte. Os parâmetros biológicos talvez precisem ser um pouco melhor analisados. Este parâmetro é um deles, ter concentração de testosterona compatível com o sexo feminino. Então, ela faz um tratamento durante um ano, tomando estrógeno, bloqueando a produção de testosterona; ou, se for o caso, retirando testículo. Aí temos um parâmetro. Contudo, é preciso analisar os outros, não tenho esta resposta. Acho que teria de se discutir individualmente, caso a caso, para avaliar as implicações. Existem outros casos, como a da Caster Semenya, do atletismo, nos 800 metros. A moça é imbatível. Isso é legal, ela tem de competir, está tudo certo. Mas e as outras atletas? Como fica a situação delas? (A sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica nos 800 m, teve sua sexualidade questionada assim que apareceu no atletismo, em 2009. Chegou a ficar sem competir, mas foi liberada em 2010 pela Federação Internacional de Atletismo, que não divulgou os resultados).
A discussão sobre o caso da Tifanny acaba caindo em questões ideológicas. Falta embasamento científico? Existe o embasamento científico, mas o problema é que sozinho não resolve a questão. Sempre há o parâmetro social, político ou ideológico em relação à inclusão de uma pessoa. Isso acaba se sobrepondo ao parâmetro científico. Acho que é uma questão quase insolúvel, nunca iremos chegar num ponto realmente justo, de satisfazer a inclusão da pessoa e ao mesmo tempo ela não ter vantagens sobre outras, que também têm os seus direitos. A questão ideológica passa por cima, não há como evitar.
A comissão médica da CBV, que aprovou a participação da Tiffany, disse que estaria repensando a participação dela entre as mulheres. A que se deve esta mudança? Acho que tem a ver com o desempenho dela. É evidente que tem vantagem sobre as outras. Ao mesmo tempo em que queremos garantir seu direito para competir, de trabalhar, também temos de dar o direito às outras meninas que competem contra ela. É muito difícil achar um meio-termo. Aparentemente, a solução seria criar uma limitação de idade para que a pessoa faça a cirurgia e assim competir no feminino. Ainda assim, cria uma situação complicada, de preconceito, segregação, como resolver?