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A França de Mbappé lembra o Brasil das antigas

Como um episódio engraçado de Paulo Cezar Caju em 1975, no Olympique de Marseille, ajuda a entender a bagunçada seleção francesa do espetacular atacante

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 dez 2022, 16h14 - Publicado em 4 dez 2022, 14h00
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  • DOHA – A seleção da França, meio bagunçada, lembra um pouco os times dos anos 1970 e 1980. Tem um treinador que não é lá muito afeito a pranchetas: Didier Deschamps dá a impressão de distribuir as camisas e dizer, sem mais palavras, “joguem”. Tem um armador das antigas, e como é bom vê-lo em campo: o fenomenal Antoine Griezmann. Tem um centroavante grossão que, milagre, deu agora para marcar gols: Giroud. E tem Mbappé lá no canto esquerdo, rápido que só ele, espetacular, imparável – um craque que em seus melhores momentos, e apenas em seus melhores momentos (e já fica aqui o pedido de desculpa pela heresia), lembra Garrincha do lado torto, porque o negócio dele é ser gauche na vida, apesar de destro. Há quem, ao ler a descrição acima, considere a França apenas ruim e limitada – e não há milagre que faça uma seleção mediana passar das quartas e da semifinal.

    Mas o que interessa, agora, em exercício de livre pensar – e como definiu Millor Fernandes, “ livre pensar é só pensar” – a França de 2022 remete ao futebol brasileiro de um tempo mais romântico. E então, tal como a madeleine de Proust, o bolinho de limão mergulhado no chá a remeter para a infância, cabe o passeio a um episódio do passado, extraordinário e engraçado, de jogadores brasileiros na França – muito antes de Neymar vestir a camisa do PSG e fazer do marketing uma profissão de fé.

    Logo depois da Copa do Mundo de 1974, Jairzinho e Paulo Cezar Lima – que ainda não era o Caju – foram contratados pelo Olympique de Marselha. Desembarcaram como estrelas, afinal ambos tinham sido tricampeões em 1970 e jogavam um bolão. Caju nunca escondeu que a oportunidade de viver na França só estaria completa se pudesse aprender francês, aproveitar o cotidiano, beber das chances de vida para além do gramado e de uma chuteira.

    Na manhã de sábado, 3 de maio de 1975, ele e a namorada foram curtir a praia de La Grande Mer, um paraíso na terra de água esmeralda entre Marselha e Toulon. O ônibus da delegação do Olympique sairia do estádio ao meio-dia em ponto, para o jogo da trigésima-sexta rodada da League 1 contra o St. Étienne, numa viagem de pouco mais de três horas. Caju se atrasou, é claro. Telefonou para um amigo que o recolheu em casa, num Renault 4L já rodado em demasia. Correram, correram, pé na tábua, a ponto de ultrapassar o veículo oficial. Pararam em um posto da rodovia A7. Caju, como quem parecia pedir uma carona, sem camisa, calça boca-de-sino, postou-se à beira do acostamento. Estendeu o polegar, esticou o braço e voilà. O ônibus parou, ele deu uma corridinha e resolvido o problema. Em termos: sabe-se lá como havia um fotógrafo, um papparazo de Fellini, para registrar a cena – e as imagens parariam nas primeiras páginas dos jornais parisienses, sempre dispostos a cutucar os times do sul.

    Foi um estardalhaço, atalho para a fama de bon vivant de Caju. Naquela noite, o St. Étienne, uma das grandes equipes europeias da temporada de 1974/1975, goleou o Olympique. Paulo Cezar abriu o marcador, de cabeça, como quem pedisse desculpa pela confusão do atraso, mas não adiantou. Les Verts, ou o ASSE, como são conhecidos, viraram para 4 a 1, com gols de Revelli, Christian López, Larqué e Bathenay.

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    Pelo telefone, em conversa com VEJA, quarenta e sete anos depois daquela jornada digna de uma comédia de erros francesa, enquanto Mbappé vence na velocidade a defesa polonesa – como aquele Renault mambembe que alcançou o ônibus –, Caju dá uma de suas risadas tonitruantes, para serem ouvidas do Leblon a Doha, sem escala, num Concorde. “Foi só um deslize, um acidente de trabalho, não teve nada de indisciplina”, diz. A explicação: ele tinha acabado de chegar e Marselha era parecida demais com o Rio de Janeiro. “Tinha o sol, as praias, as boates”, lembra. “Tudo bem, não foi legal, mas era um tempo de mais fantasia”.

    Fantasia como a de Mbappé, que andava errando tudo, até que, aos 28 minutos do segundo tempo,  estufou a rede do polonês Szczesny: 2 a 0. Aos 45, fez o terceiro. O goleirão agora já não sabe nem onde pôr as consoantes de seu sobrenome, embaralhadas. Demorou, mas o cracaço apareceu – e o menino tímido de 19 anos que explodiu na Copa da Rússia, em 2018, agora manda e desmanda na seleção da França. Ele tem 9 gols em Copa do Mundo. O recorde é do alemão Miroslav Klose, com 16. Mbappé tem apenas 23 anos de idade – e a vontade de viver que Caju tinha lá nos idos dos anos 1970. A França venceu a Polônia de Lewandowski, que marcou de pênalti, por 3 a 1.

    Paulo Cezar Caju
    Deu tempo de pegar o ônibus a caminho de St. Étienne: Caju marcou, mas o Olympique levou de 4 a 1 – (Paulo Cezar Caju/Arquivo pessoal)
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