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Ruínas da infância

Em mais um livro voltado para a “pequena história” cotidiana da União Soviética, S. Aleksiévitch compila relatos de quem era criança ao tempo da II Guerra

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 19 out 2018, 07h00 - Publicado em 19 out 2018, 07h00
‘As Últimas Testemunhas’, de Svetlana Aleksiévitch (tradução de Cecília Rosas; Companhia das Letras; 54,90 reais ou 34,90 reais em versão digital) (//Divulgação)

As Últimas Testemunhas, obra recém-lançada no Brasil, faz parte do projeto literário-memorialístico da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, de 70 anos, prêmio Nobel de Literatura de 2015. O ciclo abarca grandes temas da história da União Soviética. A Guerra Não Tem Rosto de Mulher e também este As Últimas Testemunhas trazem relatos de sobreviventes e combatentes da Grande Guerra Patriótica (1941-1945) — maneira pela qual os russos chamam a II Guerra —, período de perigo e, ao mesmo tempo, de profunda comunhão para o povo soviético, que contribuiu para forjar, a ferro e fogo, a identidade pátria. Homens de Zinco (ainda não publicado no Brasil) apresenta histórias dos combatentes e dos familiares dos soldados que (não) voltaram para casa em caixões de zinco, após os encarniçados combates na Guerra do Afeganistão, conflito em que a União Soviética se engajou a partir do fim da década de 70. Vozes de Tchernóbil, por sua vez, compila relatos de pessoas que lograram sobreviver ao tétrico acidente em uma usina nuclear na cidade ucraniana de Tchernóbil, em 1986. Ao cabo, O Fim do Homem Soviético tematiza o réquiem da utopia com o esfacelamento do bloco comunista e da União Soviética, entre o fim da década de 80 e o início dos anos 1990.

Sempre pelo prisma dos narradores de Svetlana Aleksiévitch — a autora/ouvinte estrutura seus livros com base em conversas/relatos que foi compilando ao longo de décadas —, as obras dão voz aos fragmentos e escombros das memórias que forjam a pequena história — a história de expectativas e suspiros, nostalgias e fraturas, a história que, a despeito de ser acossada pelos obuses e batalhões da Grande História, tem muito mais proximidade com a pele e as lágrimas do cotidiano.

Se em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher Svetlana traz à tona vozes de agentes que não envergam a clava da guerra (as mulheres), em As Últimas Testemunhas os relatos da pequena história se voltam para o tamanho diminuto (e o enorme lirismo) das vítimas mais indefesas: as crianças. A noção de que a guerra transforma as crianças órfãs em derradeiras testemunhas parece expressa, em toda a sua tragédia, por um aforismo do ­poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Só alguém dentro de uma situação pode julgá-la, e ele é a última pessoa que pode julgar”. Se, em condições normais, faltam às crianças a vivência e a maturidade que amparam a faculdade de juízo, o sacrifício da infância em meio à guerra faz com que os pequeninos resvalem pelo fundo doloroso da vida e da história sem a parcimônia da melancolia que vai se decantando com os ombros curvados pelo tempo — para usar a consagrada imagem poética para a maturidade triste e cabisbaixa.

Mas como é que as outrora crianças com as quais Svetlana conversou se lembram da guerra? Eis o que nos diz a operária Jênia Belkiévitch, que, à época do conflito, tinha 6 anos: “Meu irmãozinho Vássia acordou, ele viu que eu estava chorando e soltou um grito: ‘Papai!’. Meu pai nos viu, cobriu a cabeça com as mãos e foi andando, até sair correndo. Ele tinha medo de olhar para trás. (…) O sol batia no meu rosto. Tão quente… Mesmo agora não consigo acreditar que naquela manhã meu pai foi para a guerra. Na época eu era bem pequena, mas acho que tinha consciência de que eu o estava vendo pela última vez. Nunca mais me encontraria com ele. Foi assim que ficou associado na minha memória — guerra é quando o meu pai não está”.

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BELEZA DA DOR – Svetlana: pequenas vozes, grande lirismo (Beatrice Lundborg/Scanpix/AFP)

A engenheira hidrotécnica Kátia Korotáieva não descobriu a beleza panteísta da natureza lendo a poesia do chileno Pablo Neruda. A guerra fez irromper a sinestesia da menina que, então, tinha 13 anos: “Vou contar do cheiro… Qual é o cheiro da guerra… Era junho, mas maio e junho de 1941 foram frios. Se na nossa terra o lilás floresce em algum momento de maio, naquele ano ele floresceu no início de junho. E assim o começo da guerra para mim está para sempre ligado ao cheiro do lilás. Ao cheiro da cereja-galega… Para mim, essas árvores sempre vão ter cheiro de guerra”.

Foi o poeta francês Stéphane Mal­larmé que, certa vez, sentenciou que o sofrimento teria sua justificativa ontológica relacionada à profunda beleza com que vem municiando a arte ao longo da história. Diante da beleza lúgubre que se assenta sobre as lágrimas das crianças, a obra de Svetlana Aleksié­vitch só faz recolher os escombros da máxima de Mallarmé. Quando os pequeninos se transformam nas últimas testemunhas, já não é possível vaticinar que a beleza salvará o mundo, como disse o russo Fiódor Dostoievski no romance O Idiota. É preciso saber se, ao fim, o mundo ainda conseguirá resgatar a beleza de seu cativeiro.

Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605

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