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Elvis está vivo

Recém-recuperado de um câncer, Elvis Costello lança um ótimo disco para provar que está longe de ser o roqueiro sessentão que só canta velhos hits

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 out 2018, 07h00 - Publicado em 19 out 2018, 07h00

“Eu não mereço ser tratado como a pessoa que lutou contra o câncer”, diz um enfático — e um tanto mal-humorado — Elvis Costello. É compreensível que o músico inglês deseje se esquivar do assunto. Em julho, quando divulgou que cancelaria uma série de shows por causa de uma cirurgia para a retirada de um tumor maligno, o cantor de 64 anos caiu no que chama de “um drama desnecessário” — um drama que, como tudo o que é desnecessário, foi amplificado pelas especulações na internet. “Tive um tumor, tirei e pronto. Foi muita sorte tê-­lo descoberto logo no início. Se demorasse mais, então, sim, eu teria um sério problema de saúde a enfrentar”, disse Costello a VEJA. Seu novo trabalho, porém, acabou associado a esse percalço de saúde: Costello recebeu o diagnóstico enquanto preparava o recém-lançado Look Now, seu 31º disco. Nada mudou nas letras, diz o compositor, mas as gravações ganharam em intensidade. “Eu pensei: ‘Preciso terminar isso e dar o melhor de mim, caso aconteça alguma complicação e eu não possa mais trabalhar’.”

Costello de fato entrega um álbum de fôlego, com uma costura das várias imersões musicais — pop, soul, rock, um certo toque jazzístico — que fez ao longo de uma carreira de quatro décadas. Cada canção é uma história sobre amor, família, decepção, entre outros temas tão comuns e tão humanos, que ele trata com sensibilidade única. “São músicas sobre como olhamos uns para os outros em situações íntimas. Uma filha que descobre que o pai trai a mãe. Uma mulher abandonada que rasga o papel de parede da casa e se lembra de quando decorou o ambiente e estava apaixonada. São personagens que me ajudam a ver o amor e a vida de um jeito menos convencional”, explica o cantor.

A habilidade para compor e a flexibilidade para transitar entre gêneros e parceiros musicais são parte da receita que faz de Costello um dos mais relevantes autores das últimas décadas. Criado entre a rebeldia do punk e o intimismo do pub rock, próximo, nos anos 70, a nomes como ­Nick Lowe e Patti Smith, o músico com o tempo foi bebendo de outras fontes e tornando sua produção mais acessível. Trabalhou com Allen Toussaint, divindade do jazz e do R&B de Nova Orleans. Flertou com o clássico no disco The Juliet Letters, com o quarteto de cordas Brodsky. Fez músicas com Paul McCartney — algumas delas incluídas no disco Flowers in the Dirt (1989), do ex-beatle —, que chegou a comparar a química que teve com o parceiro mais jovem à experiência de trabalhar com John Lennon. Costello também se envolveu com canções brasileiras. “Não conheço nenhum bom músico que não seja fã do João Gilberto”, diz. E encontrou seu parceiro musicalmente mais afinado no pianista e compositor americano Burt Bacharach, mestre do easy listening, com quem lançou Painted from Memory, de 1998, e com quem voltou a trabalhar em Look Now.

Pai, com a também cantora Diana Krall, de dois gêmeos de 11 anos, Costello mostra-se reservado ao falar da vida matrimonial: “Diana é uma inspiração. Dividimos nossa vida e temos a sorte de ter a mesma vocação profissional. Mas música é uma experiência muito particular”. Sagrado como um grande letrista e compositor, Costello não quer deitar nos proverbiais louros. A mera condição de veterano do rock não o satisfaz. Seu desafio é encontrar um delicado equilíbrio que permita “manter vivas as canções do passado, sem deixar de fazer coisas novas”. “Não quero ser o cara que sobe no palco e só canta hits antigos”, declara. “Quero misturar meu passado com meu presente.” Atual, mas bem amparado na história do compositor, Look Now faz exatamente isso.

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O mundo visto com outros olhos

O compositor inglês Elvis Costello fala sobre o câncer, a carreira — e sobre o desafio de compor personagens femininas.

O câncer mudou muito sua vida? Não. Na verdade, eu nunca fiquei doente. O único tratamento foi a cirurgia. Mas a recuperação minou minha energia. Cancelei uma turnê, porém já tenho shows agendados a partir de novembro. Espero que eu possa voltar ao Brasil em breve. Sou grato pela sorte de ter descoberto cedo o tumor. E passei a apreciar a força de amigos que estão passando por situações muito piores.

Aos 64 anos e com mais de quarenta de carreira, como avalia o que já fez até aqui? A idade me fez valorizar a relação com amigos e colegas de trabalho com quem passei coisas ótimas e terríveis. Você vê seus filhos crescer, tem de passar pela experiência de perder familiares. Então acumula mais conteúdo sobre o qual escrever e espera que, com o tempo, tenha aprendido alguma coisa e não tenha se acomodado nem se convertido em um egoísta autocentrado. Por isso crio narrativas, para poder ver o mundo pelos olhos de outras pessoas.

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Entre os vários personagens de Look Now, seu novo disco, há mulheres. Como é compor na voz feminina? Quando eu canto como um “ele”, as pessoas logo supõem que é uma experiência minha ali. Mas, quando é na voz de uma mulher, o ouvinte para e reflete. Ele se dá conta de que aquilo é uma ficção, de que estou tratando de personagens. Nunca me incomodou um homem que canta no gênero feminino. O importante é manter-se fiel à trama que está sendo narrada. Para mim, a música é mais do que palavras, é um sentimento. É sobre humanidade.

O disco é bem romântico, afora a faixa I Let the Sun Go Down, que tem um tom mais político. Foi uma opção não entrar tanto em temas explosivos neste momento em que vários artistas reagem ao governo Trump ou ao Brexit? I Let the Sun Go Down foi a maneira que encontrei de entrar no assunto, sem cair na histeria atual. Há muita gritaria, de todos os lados. Ninguém ouve ninguém. O discurso que faz a divisão entre nós e eles vem aparecendo no meu país, nos Estados Unidos, em diversos países, e cada lado da disputa conta com alguma figura que pensa só em si mesma e não no bem comum da sociedade. Essa música fala de um homem que acredita tanto no nacionalismo que, quando seu império cai, ele acha que foi culpa dele. É sobre a superstição de que temos a missão de manter no poder o que nos serve. Esse desejo de colocar sua bandeira acima das outras, para mim, é inexplicável.

Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605

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