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Curadoria esconde piadas preconceituosas na mostra do ‘Pasquim’

Com a decisão, uma pergunta foi reinaugurada: o politicamente correto mata o humor? A resposta é não

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 dez 2019, 13h59 - Publicado em 29 nov 2019, 06h00

Uma sala acanhada, com luz teatral, os focos dramaticamente apontados para instalações de pouco mais de 1 metro de altura, esconde os pequenos pecados da belíssima exposição O Pasquim — 50 Anos, em cartaz no Sesc Ipiranga, em São Paulo, até abril de 2020. Veem-se as tirinhas e charges dissimuladas por trás de peças que lembram aqueles monóculos de plástico coloridos dos anos 1960 e 1970, de formato cônico — com a foto de um lado e uma lente de aumento do outro. Em alguns casos, cortinas cobrem os desenhos. O espaço tem um nome que pressupõe o que se verá lá dentro, um tanto recôndito e evidentemente envergonhado: “Pasquim Incorreto”. Estão disfarçadas, naquele canto, as piadas mais chulas e preconceituosas do tabloide que, ao longo de 22 anos, mas sobretudo em seus primeiros tempos, durante a ditadura militar, cutucou todas as feridas ao se anunciar “livre como um táxi”, “equilibrado como um pingente” e “incômodo como um folião num velório”.

A concentração recatada dos capítulos mais “folgazões” do semanário, para usar uma expressão de um de seus criadores, o jornalista Sérgio Augusto, impõe a retomada de uma questão: o movimento politicamente correto matou o humor? Antes de responder à pergunta, convém anotar o que diz o catálogo da exibição: “O Pasquim foi um jornal moleque e sem limites. No espaço Pasquim Incorreto as obras estão dentro de visores para que sejam apreciadas por meio das lentes do passado, dentro daquele contexto e com o olhar crítico do presente”.

SIG – O ratinho de Jaguar: o ícone do jornal “comentava” os textos (./.)

Mas, afinal de contas, a correção política fere de morte a graça? “Não, apenas mata o humor fácil, ancorado no preconceito”, diz Nelito Fernandes, do Sensacionalista, publicado por VEJA, e um dos redatores finais, ao lado de Martha Mendonça e Gabriela Amaral, do programa Zorra, da Globo. “A piada inteligente sempre viverá.” Para Nelito, fazer rir exige uma permanente negociação com os humores do cotidiano, com o que pode e o que não pode, ao ritmo do pêndulo das transformações da sociedade. Se é o caso de comprovar a permanência do chiste que já não fere nem machuca, gratuitamente, basta olhar para o próprio Zorra. De 1999 a 2015, quando ainda era chamado de Zorra Total, seu edifício era construído em cima de anedotas estúpidas contra as minorias, porque naquele período era assim que se fazia — hoje, o tom é mais político, com riso que demora alguns segundos para brotar, mas depois vem que vem, escancarado. No modo do passado, o programa alcançava, em média, 16 pontos no Ibope, segundo fontes da Globo. Hoje, vai a 22 pontos. Ou seja: há, sim, gente interessada na pilhéria que foge da execração.

A adaptação aos novos tempos não foi fácil — e segue sendo exercitada incansavelmente. Sérgio Augusto cria uma metáfora: “É como o eSocial, o sistema digital que reúne os dados dos trabalhadores, evita fraudes, força ao pagamento de impostos e significou um tremendo instrumento de justiça, especialmente para as domésticas. É útil, é bom, é muito bem sacado, precisamos nos acostumar e parece não ter recuo — mas é um porre”. Trata-se, para usar uma expressão batida, de um mal necessário. O politicamente correto — denominação criada pela direita americana ao criticar as posturas igualitárias da esquerda, nos anos 1970 — ataca o que precisa ser atacado: o racismo, a discriminação, o fundamentalismo religioso. Ao dar as mãos à zombaria, inaugurou um debate que os humoristas mais sérios sabem ser impossível negar. “A piada está perdendo seu lugar de fala”, ri Helio de La Peña, do Casseta&Planeta, fazendo troça de uma expressão típica de nosso tempo (o grupo faz uma apresentação em comemoração aos seus 30 anos no dia 8 de dezembro, no Vivo Rio). Para ele, o nascimento e o crescimento das redes sociais romperam um pacto. Humoristas como Chico Anysio, Costinha e Jô Soares tinham um registro recatado na televisão, para milhões de telespectadores. Nos teatros, em espaços mais restritos, “soltavam os cabelos”. Hoje, entre stories e lives, não há mais fronteiras — e essa ágora infinita, somada às boas imposições contemporâneas, impôs limites. “Um cidadão pode fazer a piada que quiser, mas precisa aceitar as críticas que surgirem”, diz Nelito, do Sensacionalista. “Não pode se achar no direito de sair soltando bobagens e depois reclamar da reclamação. O humor está sujeito às regras de convívio social.”

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ATRIZ DESBOCADA – Em 1969, mesmo escondendo palavrões: censura (./.)

O que não perde validade, e nunca perderá, são as piadas contra os poderosos — quanto mais estultices disparar um presidente da República, por exemplo, mais afiado será o tsunami contrário, e não cabe aí nenhum tipo de autocensura. Nas palavras de Elias Thomé Saliba, doutor em história pela USP e especializado na trajetória do humor brasileiro, “o riso continua sendo a arma dos impotentes”. Haverá, sempre, alguma dose de transgressão — mas não aquela que pede para ficar oculta, como na sala da antologia do Pasquim (convém ressaltar que todo o resto da exposição é um passeio iluminado pela genial sagacidade que driblou o autoritarismo). Talvez seja o caso de seguir o conselho do escritor israelense Amós Oz (1939-2018) e de sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, no livro Os Judeus e as Palavras. Ao tratarem do reconhecido manancial judaico para a autoironia que faz gargalhar, eles escrevem: “Sim, o humor é muitas vezes rude e grosseiro. Se os judeus são relativamente frouxos em relação à blasfêmia, por que haveriam de se preocupar com um pouco de indelicadeza? Mas, dada a escolha entre humor vulgar e fanatismo refinado, nós optamos pelo humor vulgar em qualquer momento”. Se o alvo da caçoada não gostar, é do jogo — e que alguém conte outra. No jardim que permeia a mostra do cinquentenário do Pasquim há uma coleção de bonecos de papelão com figuras ilustres da trajetória do jornal — Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar, Paulo Francis, Sérgio Cabral, Tarso de Castro etc. — e Sérgio Augusto. No Twitter, ele deu o tom da prosa, ao postar a foto de seu avatar: “Nunca pensei que fosse virar totem, só, no máximo, tabu”. Tabu como deve ser considerado, sim, o humor sem freios, banal e desrespeitoso.

Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663

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