Narrada no longa-metragem Spotlight, a investigação do jornal Boston Globe que revelou como a Igreja Católica acobertou crimes de pedofilia praticados por seus sacerdotes foi gestada ao longo de muitos meses. Nesse período, houve descobertas, desencontros e dificuldades, até que a equipe chegasse ao grande furo de reportagem, vencedor do Prêmio Pulitzer.
O recém-lançado livro-reportagem O Roubo do Enem conta um grande furo brasileiro, do jornal O Estado de S. Paulo, no qual o tempo é outro: de um primeiro telefonema-chave à publicação da manchete, decorreram apenas 24 horas.
Para quem não se lembra do escândalo: em 2009, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi suspenso a poucos dias de sua aplicação depois que a repórter Renata Cafardo informou ao governo federal que havia tido acesso à prova. Horas antes de dar a notícia bombástica sobre esse vazamento à equipe do então ministro da Educação, Fernando Haddad, ela e o colega Sergio Pompeu haviam se encontrado com homens que surrupiaram da gráfica exemplares do teste e tiveram a infeliz ideia de tentar vendê-lo a repórteres por 500.000 reais, desavisados de que nenhum profissional sério da área jamais cogitaria pagar por informação.
Na breve conversa em um café do bairro paulistano de Perdizes, os criminosos permitiram que a jornalista folheasse o calhamaço por alguns segundos, o suficiente para ela memorizar detalhes que tornaram incontestável a confirmação das questões: uma tirinha da personagem Mafalda, um texto da revista VEJA sobre o filme Touro Indomável, outro sobre o programa de mensagens do MSN, entre outros. Mesmo que no imponderável afogadilho, o jornal havia planejado bem a missão: enviou até paparazzi para registrar os rostos dos bandidos.
Sustentar em um volume de 210 páginas o que aconteceu em um único dia não haveria de ser tarefa possível se a obra, assinada pela própria Cafardo, se propusesse a ser uma compilação de memórias. O que dá corpo à história é o fato de ser um livro-reportagem, que entrevista personagens laterais a fim de não apenas retratar o dia tenso na redação do Estadão, no qual desconfianças e temores por vezes quase tiram a equipe da rota correta rumo à manchete, mas ir além. A obra mostra a tensão entre membros do MEC, os bastidores do roubo na gráfica, a corrida em outras redações pelo mesmo furo (mais jornalistas foram procurados), como Fernando Haddad capitalizou o que poderia ser sua morte política e onde estão os envolvidos na história (imaginem que, procurado pela autora no livro, um dos ladrões quis cobrar para dar entrevista).
Há alguns capítulos de contextualização sobre o próprio Enem em que a narrativa, talhada de forma não linear, se desacelera de forma um pouco abrupta. Excluindo-se esses momentos, o resultado é um alucinante Spotlight à brasileira, em ritmo Jack Bauer, personagem do seriado 24 Horas.
É, aliás, uma trama com tantas cenas pulsantes que parece feita para cinema. E que merece cair no Enem, mesmo que seja em uma mera questão gramatical ou de interpretação de texto. Seria uma excelente prova de que a organização do exame tem o espírito crítico que tanto diz buscar nos estudantes.
Entrevista com a autora