Ouvir que seu filho vai sair da escola falando inglês perfeitamente soa como rock and roll para pais da era da globalização. Eles sabem que ser fluente na língua franca dos tempos da internet já não é mais só desejável — virou ferramenta obrigatória em boa parte das carreiras. Prometendo justamente isso — ensinar aos alunos inglês desde criancinhas —, multiplicam-se em ritmo acelerado, sobretudo nas capitais, as escolas bilíngues, que martelam o segundo idioma quase tanto quanto o português, e suas irmãs mais radicais, as escolas internacionais, onde a última flor do Lácio é o segundo idioma. Nos dois casos, o aprendizado se mescla com um currículo carregado de interatividade e de reforço das chamadas habilidades socioemocionais, um movimento planetário que tem como propósito formar cidadãos do mundo. “O bilinguismo hoje em dia está quase sempre vinculado a uma experiência mais ampla, com ambições globais”, explica a consultora Letícia Pimentel, que trabalhou na implementação desse tipo de ensino em diversas escolas de São Paulo.
Um levantamento da Associação Brasileira do Ensino Bilíngue (Abebi) mostra que, desde 2014, o mercado cresceu 10% e movimenta 250 milhões de reais atualmente. Só em São Paulo, onde existem 71 instituições de ensino bilíngue e oito internacionais, o número de alunos saltou, em cinco anos, de 2 800 para 4 600, segundo a Organização das Escolas Bilíngues de São Paulo. Não há uma legislação detalhada para a distribuição do tempo entre inglês e português nas escolas que ensinam duas línguas, embora todas elas apliquem, em paralelo, as disciplinas previstas na Base Nacional Comum Curricular. A Eleva, no Rio de Janeiro, apresenta metade do conteúdo em inglês em todas as séries, ao passo que na Concept, de São Paulo, os pequeninos recebem 90% do que lhes é ensinado em inglês e os mais velhos, 60%. A proporção muda nas escolas internacionais, aquelas que têm sua matriz no exterior e priorizam os currículos de seu país de origem — na Escola Americana do Rio, quase todo o conteúdo é em inglês e a carga de português é maior para os alunos daqui do que para os estrangeiros.
Em vista dessas variações, o bom-senso recomenda um equilíbrio entre os dois idiomas para quem vai seguir os estudos no Brasil e maior proporção da segunda língua para os que planejam continuar sua educação fora — e uma seleção criteriosa por parte dos pais (veja o quadro), já que bilíngue não é sinônimo automático de qualidade. “O segundo idioma tem de fazer parte do dia a dia da escola, e não só de uma disciplina”, alerta o coordenador pedagógico da Eleva, Márcio Cohen. Seja qual for a quantidade de línguas oferecida, a ciência mostra que apresentar a criança a dois idiomas só faz bem ao seu desenvolvimento — e, quanto mais cedo, melhor. Como o aprendizado da segunda língua envolve áreas do cérebro distintas da usada para aprender a língua-mãe, ele incentiva a formação de novas sinapses. “Esse estímulo melhora, inclusive, o desempenho em outras tarefas cognitivas, como memória, raciocínio e criatividade”, diz Ariovaldo Silva, neurocientista da Universidade Federal de Minas Gerais.
O sonho de consumo dessa nova leva de escolas é a Avenues, nascida em Nova York (conhecida, entre outros famosos, por ser a alma mater de Suri, a filha de Tom Cruise) e instalada em São Paulo desde 2018. Ela aplica um currículo personalizado e, na unidade paulista, apenas os chamados world courses (história, geografia e ciências sociais) são dados em português — além das aulas do próprio idioma. “Não se fala mais em bilinguismo sem considerar o multiculturalismo”, explica Cristine Conforti, a diretora pedagógica da instituição. Uma característica comum a todas as boas escolas que ensinam em duas línguas é a utilização do Project Based Learning, metodologia na qual as disciplinas interagem por meio da elaboração de projetos. No Mastery, atividade eletiva da Avenues para as três últimas semanas do ano, os alunos desenvolvem projetos pessoais em qualquer área, desde que conciliem princípios de português, matemática e inglês.
No âmbito das onipresentes competências socioemocionais, a Eleva carioca oferece uma “aula de vida”, na qual os alunos são ensinados a lidar com as emoções. A escola conta também com um maker space, espaço onde se aprende (em inglês) questões práticas do dia a dia, como mexer com eletricidade. “Minha filha está tendo uma ótima preparação para a vida adulta”, diz a gerente de produtos Bruna Accioly, 41 anos, mãe de Rafaela, 11 anos, e de Felipe, 8, que também estuda lá. A Gurilândia, de Salvador, explorou no primeiro trimestre o tema “Onde estamos”. “Todas as turmas estudaram imigração. Falamos sobre xenofobia, preconceito, e junto trabalhamos geografia, história e gramática”, diz a diretora pedagógica Denise Rocha. Escolas tradicionais também estão se convertendo ao bilinguismo. A Pueri Domus, de São Paulo, promoveu uma reviravolta em 2016. O novo currículo, quase todo em inglês e em período integral, abraçou os projetos interdisciplinares e o desenvolvimento de habilidades como liderança e resiliência. “Do total, 90% permaneceram na escola, apesar do aumento da mensalidade”, afirma a diretora Christina Sabadell.
Desde a chegada de dom João VI e sua corte ao Brasil que idiomas estrangeiros são disciplinas obrigatórias nas escolas. Naqueles tempos em que a elite era fluente em francês, um decreto real institucionalizou o ensino público dessa língua e também do inglês. Como aqui tudo cresce e floresce, só que bem devagar, a teoria viraria prática 29 anos depois, na inauguração do Imperial Colégio de Pedro II (no Rio até hoje). Mas em geral o inglês nas escolas é fraco e nos cursos particulares, até por falta de tempo, também deixa a desejar. É nessa lacuna que as bilíngues crescem.
No mundo ideal, todas as salas de aula brasileiras seriam bilíngues. No entanto, a Abebi calcula que no máximo 3% das 40 000 escolas privadas do Brasil ensinem um segundo idioma para valer (na Argentina e no Chile o porcentual chega a 10%). A disseminação do aprendizado em duas línguas empaca na barreira do preço. Nas escolas bilíngues, a mensalidade vai de 3 000 a 5 000 reais. Nas internacionais, o preço é ainda mais salgado, beirando os 10 000 reais na Avenues. “Vivemos em um mundo conectado, e falar só português, de fato, limita os relacionamentos”, diz Claudia Costin, do Centro de Excelência em Políticas Educacionais da FGV. “Mas não se pode dizer que a escola tradicional esteja ultrapassada, desde que ela cumpra seu papel mais importante, que é ensinar a pensar.” “A educação do futuro é aquela que prepara os jovens para alcançar objetivos, fazer grandes coisas”, concorda o especialista americano Marc Prensky, da Universidade Harvard. Ele vai mais longe e considera a urgência atual de aprender inglês um fenômeno transitório: em poucos anos, a função de entender um idioma estrangeiro caberá aos tradutores digitais, como o do Google.
Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649