Como será a volta às aulas após a temporada compulsória de ensino on-line
Intensifica-se o debate sobre as aulas virtuais. Poucos gostaram da experiência, mas ela é inescapável — e isso pode ser bom
As aulas mal haviam começado no Brasil em 2020 quando a pandemia chegou e todas as escolas fecharam. Presos em casa, pais, alunos e professores precisaram se adaptar de uma hora para outra ao ensino on-line — e muita gente não ficou satisfeita. Foram meses de aulas marcadas por distração, tédio e pouco aprendizado de um lado e um esforço nem sempre recompensado de outro. Isso, quando havia conexão decente: um em cada quatro brasileiros não tem sequer acesso a internet. Agora que se começa a falar no retorno à sala de aula, outras questões despontam no desconhecido mundo que se avizinha. Como manter o tão recomendado distanciamento social? Como saber quanto cada um verdadeiramente assimilou em casa? E como, afinal, recuperar o conteúdo perdido?
Enquanto os planos vão sendo traçados, duas certezas se cristalizam. Uma delas é que o ensino tal qual o conhecíamos deixará de existir por um bom tempo, talvez para sempre. A outra é que a educação remota, que a necessidade forçou sobre as pessoas, veio para ficar, por ser a única forma de abranger todos os alunos ao mesmo tempo. A perspectiva pode soar assustadora, pela má impressão inicial que o aprendizado eletrônico deixou, mas ela tem o mérito de pôr o ensino pela internet na torre de lançamento para uma muito anunciada e nunca materializada transformação da educação. “Crises são aceleradoras de futuro. Estamos assistindo ao princípio de uma revolução”, diz Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas.
Enquanto a amplitude dessa revolução vai sendo construída, o sentimento predominante entre pais e alunos é de que o ano escolar está perdido. Os números são vagos no Brasil, mas uma pesquisa americana mostra que o estudante médio iniciará o próximo ano letivo com um terço do progresso esperado em leitura e metade em matemática. O maior equívoco do ensino oferecido durante a pandemia foi tratá-lo como mera extensão da sala de aula, sem atentar para o fato de que, na internet, a sintaxe é outra. “A linguagem ali se aproxima da do entretenimento, mais veloz e mais coloquial”, observa João Marcelo Borges, diretor da ONG Todos Pela Educação.
Engatinhando na transição, a preocupação inicial das escolas foi migrar para as telas em tempo recorde. A empresa Conexia Educação, que faz parte do grupo SEB, um dos maiores de educação básica do país, com 400 escolas, precisou treinar 6 000 professores em duas semanas. Treinamento é, de fato, ingrediente imprescindível: em pesquisa inédita realizada pelo Instituto Península, 88% dos professores disseram jamais ter lecionado a distância (veja outros dados no quadro ao lado). “Tivemos percalços, como a conexão caindo e o microfone falhando. Com o tempo, as coisas foram se ajeitando”, relata Alessandra Dias, diretora pedagógica da rede mineira Coleguium. Na casa de Nina, 14 anos, e Sofia Kwaks, 17, alunas do carioca pH, dois computadores são compartilhados entre elas e os pais, ambos trabalhando em esquema de home office. “As manhãs são nossas. Logo nas primeiras semanas percebemos os professores que estavam à vontade e os que sofriam na sala digital”, conta Nina. A avenida das dificuldades em circular pela escola a distância tem duas mãos. “Ser nativo digital não é sinônimo de saber produzir nesse meio. Alguns alunos no princípio não conseguiam anexar um arquivo no e-mail ou escanear uma redação”, afirma Vicente Delorme, diretor de planejamento do pH.
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Clique e AssineA maioria dos pais relata impotência diante de filhos desmotivados. “Tentava manter o ritmo de aprendizado da escola, mas me descobri uma péssima professora”, lembra a influenciadora digital Mariana Bridi, 35 anos, casada com o ator Rafael Cardoso, 34, e mãe de Valentim, 2, que teve a matrícula adiada, e de Aurora, 5, que está na alfabetização de um colégio na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e tem dois encontros virtuais por semana, de uma hora cada um, com a “tia” e os coleguinhas. Confinado em uma fazenda, o casal se reveza em frente à tela e na tentativa de ensinar Aurora a ler. “Não temos a didática de um professor, mas fazemos o melhor que podemos, sem stress”, diz Cardoso. Um dos pontos frágeis da educação doméstica são justamente as séries iniciais, por causa da falta de autonomia dos pequenos e do afastamento físico entre eles. “A ausência de interação social é uma grande desvantagem para as crianças menores”, alerta Tatiana Filgueiras, vice-presidente de educação e inovação do Instituto Ayrton Senna. Outro fio esgarçado é o último ano do ensino médio, pelo receio de que o estudante perca conteúdos essenciais às vésperas do Enem. “Tive medo de que minha filha ficasse desestimulada”, afirma a médica Ana Lodhia Almeida, 50 anos, mãe de Mila, 17, aluna do Colégio Farias Brito, no Ceará, que sonha seguir a mesma carreira. “Sinto falta dos amigos, mas fiquei ainda mais focada. Estudo o tempo inteiro”, afirma Mila.
A reação de Mila é uma mostra de resiliência, uma das célebres competências do século XXI — ao lado da resolução colaborativa de problemas, da adaptabilidade ao incerto e outras — que as escolas modernas têm incluído em seus currículos e que a sala de aula na cozinha de casa acabou, sem querer, estimulando. “Os estudantes tiveram de aprimorar a capacidade de organização, já que não havia professor monitorando”, pontua Katia Smole, diretora do Instituto Reúna e ex-secretária de educação básica do MEC. Ao longo da nova jornada, saíram na frente os alunos de instituições que já desenvolviam iniciativas sólidas na área, como a filial paulistana da internacional Avenues e as cariocas Eleva e Escola Americana. “Não tive problema com a mudança. Até pude aprender a mexer com outras ferramentas”, conta Beny Fuks, 11 anos, aluno da Escola Americana do Rio que, no confinamento, criou um canal no YouTube, onde já entrevistou personalidades como Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda.
Os transtornos causados pela pandemia no ano escolar não deixaram carteira sobre carteira, infelizmente. Com as escolas fechadas, 1,5 bilhão de alunos ficaram em casa no planeta. No Brasil, foram 47,8 milhões de estudantes da educação básica e 8,4 milhões de universitários. Entre os primeiros, os efeitos foram dramáticos, sobretudo na enorme parcela que frequenta a rede pública: segundo pesquisa do Datafolha encomendada pelo Itaú Social, pela Fundação Lemann e pela instituição Imaginable Futures, 58% dos pais consideram “muito difícil manter a rotina de estudos. Já no ensino superior particular (o público está sem aula de qualquer espécie), em que a educação a distância é bastante difundida, mais de 80% das escolas fizeram a transposição para a internet sem aparente problema. “A previsão é que, em 2022, teremos no Brasil mais alunos remotos do que presenciais, o que é inédito no mundo”, antecipa Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior.
Tudo continua fechado no Brasil, mas os governos estaduais e os colégios começam a montar o quebra-cabeça da volta. São Paulo acaba de anunciar a reabertura das redes pública e particular no dia 8 de setembro, com capacidade máxima de 35% nas escolas. O Rio de Janeiro prevê uma retomada gradual a partir de meados de agosto. Girar a engrenagem do retorno será operação complexa, envolvendo peças que vão do cuidado emocional de alunos e professores que perderam pessoas próximas à disposição física de tudo e todos para evitar o contágio. Com 9 000 alunos, o Colégio Visconde de Porto Seguro, de São Paulo, contratou a consultoria do Hospital Albert Einstein para criar um protocolo de biossegurança. Entre as medidas anunciadas estão a aferição de temperatura na entrada, o espaçamento entre carteiras e a troca de bebedouros por refil de garrafas. No geral, não se sabe quanto tempo a tomada de temperatura levará, se as crianças terão de usar máscara o tempo todo e como se fará com que as menores fiquem separadas umas das outras.
No aspecto pedagógico, o ensino híbrido, em parte on-line, em parte presencial, será etapa obrigatória da transmissão de conteúdo — enquanto uns estudam na escola, outros aprendem em casa (resta ver como se encaixará na rotina de pais que trabalham). “Temos de olhar com desapego para a escola que vigorava em março”, diz Tatiana Filgueiras, do Instituto Ayrton Senna. Experiências bem-sucedidas em outros países servem de bússola para as escolas brasileiras. Uma delas é o modelo criado em Israel pelo Instituto Weizmann, um dos mais reputados centros multidisciplinares do mundo. Chamado de 10-4, o método prevê que tanto os estudantes, no aprendizado, quanto seus pais, no emprego de cada um, intercalem quatro dias de atividade presencial com dez em casa. Na Coreia do Sul, a volta às aulas foi com divisórias de acrílico entre as carteiras e ocupação de um terço das salas. A Inglaterra dividiu as turmas: parte vai à escola na segunda e terça, parte na quinta e sexta. Quarta é dia de limpeza.
Superado o desafio da acomodação, os colégios terão de lidar com a inevitável defasagem no aprendizado. Haverá avaliações para saber o que foi absorvido e quem precisa do reforço de aulas extras, com extensão do ano letivo ou ampliação da carga horária. A Secretaria de Educação de São Paulo está estruturando um 4º ano do ensino médio, optativo para quem não entrar na faculdade. No ensino público, a tendência é diluir o conteúdo represado em 2021 e 2022. “A orientação agora é se concentrar no essencial de cada matéria, para que o aluno avance sem prejuízos”, explica Cecilia Motta, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação.
A inédita adaptação universal ao ensino on-line abre espaço para que a educação, fortuna da humanidade, embarque em seu maior salto desde que o alemão Johannes Gutenberg inventou, no século XV, a prensa e os tipos móveis de metal que permitiram a impressão em grande escala. Até então, o modo de ensinar seguia basicamente como nascera na Grécia antiga, por transmissão oral (escola vem do grego schloe, que quer dizer discussão, conferência). O advento dos livros democratizou o conhecimento e levou ao surgimento, 300 anos depois, da escola nos moldes atuais. “A evolução que acontece agora em tempo recorde vai ter um impacto consistente a longo prazo”, antecipa o matemático americano Salman Khan, precursor do ensino digital com a plataforma Khan Academy, que registrou com a pandemia um aumento de acessos de 300%. Tendo a internet como aliada, o professor pode customizar as aulas, detectando deficiências de cada aluno e oferecendo explicações antes que dúvidas se convertam em gargalos insolúveis. “Se alcançar uma boa simbiose com a tecnologia, o educador saberá em tempo real o nível de absorção de conteúdo e as lacunas, podendo dar suporte para que cada um progrida no seu próprio tempo”, ensina Khan, criador e promotor das chamadas flipped classes — o estudante adquire o conhecimento na internet e reserva as aulas para debater e sanar dúvidas.
A independência e o avanço gradativo no terreno do conhecimento estimulados pela chamada gamificação, em que o aluno sobe de nível à medida que resolve questões cada vez mais complexas, são subprodutos bem-vindos da tecnologia quando bem empregada — “um recurso que fala o idioma desta geração”, na definição de Rafael Parente, diretor da BEI Educação. “O aprendizado tende a ser mais personalizado, envolvente e centrado no aluno”, resume Fernando Reimers, diretor do Programa de Mestrado em Política de Educação Internacional da Universidade Harvard. Que fique claro: nada disso quer dizer que a escola vá desaparecer. O contato olho no olho entre aluno e professor, atestam os educadores, é insubstituível, assim como a interação entre colegas e as trocas que fazem com que uns aprendam com os outros. Mas as mudanças embutidas na solidificação do ensino on-line, que a pandemia precipitou, terão efeitos profundos. Disse o filósofo Immanuel Kant: “O ser humano é aquilo que a educação faz dele”. Aproveitar bem essa chance é certeza de um planeta habitado por indivíduos melhores.
Colaborou Thaís Gesteira
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693