Moradora da Vila Menck, uma das comunidades mais pobres de Osasco, na Grande São Paulo, Kathleen Vitória Rocha Pereira, de 20 anos, orgulha-se da virada que conseguiu dar na vida. No início do ano passado, ela se inscreveu no Projeto Formar, um treinamento profissional gratuito oferecido pelo Espro (Ensino Social Profissionalizante), uma entidade educacional sem fins lucrativos para adolescentes e jovens, em parceria com a Leroy Merlin, a rede varejista de materiais de construção e utensílios para o lar. “Aprendi várias coisas úteis para o mundo do trabalho, principalmente a me comunicar melhor e a me comportar em uma entrevista de emprego”, diz Kathleen. Após o treinamento de três meses, em que também aprofundou os conhecimentos de Excel, foi contratada como aprendiz no setor de distribuição da Coca-Cola. Com o salário, passou a ajudar a avó diarista e o avô eletricista nos gastos domésticos e a cursar uma faculdade de administração.
Graças ao Projeto Formar, Kathleen derrubou a principal barreira para a entrada de jovens no primeiro emprego: a falta de capacitação profissional básica. “O sistema escolar brasileiro está desconectado do mundo do trabalho, pois o padrão é acadêmico, voltado a inserir os jovens no ensino superior, quando deveria ser profissionalizante”, diz Hélio Zylberstajn, professor de economia da Universidade de São Paulo e coordenador do Salariômetro, da Fipe. O sistema atual prejudica principalmente os jovens de baixa renda, que precisam começar a trabalhar mais cedo para ajudar as famílias. É o que explica as taxas de desemprego mais altas na faixa dos 14 aos 24 anos (veja o quadro).
Regulamentada em 2005, a Lei do Aprendizado criou um mecanismo para dar aos jovens ao mesmo tempo experiência e conhecimento teórico profissional mínimo para se candidatar no mercado de trabalho. Com regras reformuladas no ano passado, essa lei estipula que médias e grandes empresas reservem entre 5% e 15% de suas vagas para trabalhadores de 14 a 24 anos, com carga horária reduzida e pagamento por hora equivalente ao do salário mínimo. Um dos dias da semana é reservado para um curso de formação profissional, pago pela empresa.
As empresas brasileiras têm potencial para absorver cerca de 1 milhão de jovens aprendizes permanentemente. Segundo o último levantamento, porém, há pouco mais de 610 000 postos preenchidos. Muitos gestores preferem contar com a fiscalização deficiente ou mesmo pagar eventuais multas a se empenhar para o preenchimento das cotas. “Algumas empresas querem aprendiz CEO, que já chega sabendo tudo”, diz Alessandro Medina Saade, superintendente-executivo do Espro. O outro lado da moeda é que o modelo de treinamento básico exigido pelo governo federal e oferecido por cerca de 3 000 entidades educacionais é considerado insuficiente para a capacitação dos jovens.
Muitas empresas sentem necessidade de investir em uma formação mais intensiva, que sirva ao mesmo tempo como uma preparação para os jovens que pretendem se candidatar a uma vaga de trabalho — seja como aprendiz, estagiário ou CLT — e também como uma forma de transformar para melhor a vida nas comunidades locais, cumprindo com um dos pilares ESG, o de contribuir para o desenvolvimento social. Para isso, estabelecem parcerias com entidades como o Espro, que atende anualmente 40 000 jovens e adolescentes em treinamentos para aprendizes ou nos projetos mais extensos de Formação para o Mundo do Trabalho (FMT).
O Espro mantém programas de FMT em conjunto com a Leroy Merlin, com a fábrica da BMW em Araquari (SC) e com a ABBC (Associação Brasileira de Bancos), entre outras empresas e entidades. O projeto com a Leroy, por exemplo, consiste em 152 horas de aulas teóricas e práticas em formato híbrido sobre aspectos específicos do segmento de varejo, além de desenvolvimento de soft skills, como comunicação eficaz, resolução de problemas e colaboração, e de ensinamentos sobre empreendedorismo.
Os participantes são selecionados entre jovens de 17 a 22 anos de comunidades próximas à unidade da rede onde realizarão as atividades práticas. No ano passado, foram 120 formandos pelo programa, que se tornou a porta de entrada dos jovens aprendizes da Leroy, mas que também preparou profissionais para outras empresas, como é o caso de Kathleen. O programa inclui treinamentos para parentes dos participantes, como pais, mães e tios, com o intuito de ajudá-los a se reposicionar no mercado de trabalho. Alguns passam a compor, por exemplo, a rede de instaladores de móveis e iluminação, entre outros serviços oferecidos aos clientes. “O Projeto Formar está inserido em nossa estratégia global de sustentabilidade, que tem como base a melhoria do habitat, compreendido não só como a nossa casa, mas o planeta como um todo”, diz Andressa Borba, diretora de impacto positivo da Leroy Merlin.
A ABBC, entidade de classe que representa pequenas e médias instituições financeiras, como fintechs e cooperativas de crédito, optou por colocar de pé um programa de capacitação com foco em sua área de atuação. Nasceu daí a Formação para o Mundo do Trabalho e Mercado Financeiro, que qualifica jovens de 14 a 22 anos. Além dos conteúdos básicos de uma FMT oferecida pelo Espro, o programa da ABBC acrescenta módulos sobre gestão financeira e negócios e letramento digital. O treinamento inclui conteúdos oferecidos voluntariamente por instituições associadas — o Banco Inter, por exemplo, fez uma palestra sobre educação financeira. Em um dos pontos altos, os jovens visitaram a sede da B3, em São Paulo. Ao final do programa, eles podem pleitear vagas de aprendizes nas empresas que fazem parte da ABBC. Outras portas também se abrem. “São conhecimentos que podem ser utilizados em outros contextos, que ajudam esses jovens em situação de vulnerabilidade social a enfrentar a dificuldade de inserção no mundo do trabalho como um todo. Para isso, é importante saber como funciona o mercado”, diz Sílvia Scorsato, presidente da ABBC e diretora de ESG do Banco Sofisa. É preciso dar uma chance para os jovens.
Publicado em VEJA, junho de 2024, edição VEJA Negócios nº 3