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Se o Brasil crescer pouco em 2020, a culpa não será apenas do coronavírus

A epidemia do Covid-19 se transformou em pivô de uma potencial crise global, mas o governo e o Congresso têm armas para aliviar o impacto no país

Por Daniel Hessel Teich e Machado da Costa
Atualizado em 4 jun 2024, 14h36 - Publicado em 6 mar 2020, 06h00
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  • O matemático libanês radicado nos Estados Unidos Nassim Nicholas Taleb ganhou fama internacional em 2007 ao criar a teoria do cisne negro. Com um poder de síntese magistral, usou a imagem dessa ave com plumas pretas (até o século XVII dada como inexistente pelos europeus) para simbolizar eventos de grande impacto que desafiam a compreensão e a lógica correntes. Uma vez confrontadas com esses fenômenos, as pessoas buscam explicações baseadas nas próprias visão de mundo e experiências para traçar cenários que as ajudem a superar as incertezas. Obviamente, conclui Taleb, o resultado de tal esforço é caótico, o que leva a mais desorientação e, claro, atitudes erráticas. Tudo porque a maioria das decisões tomadas se baseia em concepções simplistas e equivocadas do acontecimento em si. Exemplos clássicos de cisne negro com desdobramento sobre a economia mundial são o atentado às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, e a crise financeira que se seguiu à quebra do banco Lehman Brothers, ocorrida sete anos depois. Agora, ambos os episódios ganham a companhia da epidemia global do coronavírus, o chamado Covid-19.

    Em meio à efervescência de informações e dados alarmantes provenientes dos quatro cantos do planeta nos últimos dois meses, a economia global entrou em frenesi. Os índices das principais bolsas de valores do mundo migraram para o modo montanha-russa, nos dias seguintes ao Carnaval, em uma espécie de déjà-vu da crise de 2008. Na segunda-feira 2, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) recalculou suas projeções para 2020 e diminuiu em 0,5 ponto porcentual sua estimativa de crescimento da economia global, de 2,9% para 2,4%. É natural que uma doença altamente contagiosa causada por um vírus desconhecido e que pode levar à morte assuste. Mas algumas circunstâncias do surgimento do coronavírus contribuíram para que a tensão fosse maior que a provocada por outras viroses semelhantes do passado. O fato de a epidemia ter se originado no coração da segunda maior potência econômica do planeta foi uma delas. A China é hoje o principal parceiro comercial das economias mais relevantes do mundo, incluindo o Brasil. Seus centros de negócios e produção estão conectados às mais importantes metrópoles globais e qualquer oscilação que fuja ao padrão de normalidade é percebida como um sinal de alerta que implica rupturas potencialmente perigosas. A isso, acrescenta-se a impressionante capacidade de o novo vírus se multiplicar e contaminar as pessoas, o que levou a medidas de contenção até então inéditas. As numerosas perguntas (e muita confusão) sobre mecanismos de contaminação, evolução clínica dos pacientes e o que torna os infectados mais sujeitos à morte também ajudaram a fomentar o medo. O resultado é exatamente o que se vê quando o cisne negro de Taleb bate as asas: pânico e irracionalidade.

    Ironicamente, enquanto as ondas de instabilidade ainda ribombam em países como Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos, Itália e no Brasil, a China já começou a sinalizar a perspectiva de retorno à normalidade. Na semana passada, constatou-se que o ritmo de propagação da doença caiu para um quinto da velocidade quando comparado à época dos primeiros casos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o pico de disseminação do vírus em solo chinês já ficou para trás, mais precisamente no fim de janeiro. Com isso, as atividades começam a ser paulatinamente retomadas nas áreas até então sob severa quarentena. Nas nações mais ricas da Ásia, na Europa e nos Estados Unidos, apesar do número ainda crescente de casos — e mortes —, já se estruturou um arcabouço de medidas de contenção de danos econômicos baseado em estímulos e isenções fiscais para manter as turbinas funcionando em modo de emergência até a volta da normalidade.

    Em se tratando da economia brasileira, dois episódios recentes podem ser considerados versões locais dos cisnes negros. O primeiro foi o chamado Joesley Day, ocorrido em 17 de maio de 2017. Na ocasião, o vazamento da delação do empresário Joesley Batista, dono da JBS, provocou um terremoto político que soterrou de imediato uma incipiente retomada de crescimento que se iniciava no governo do presidente Michel Temer, diretamente implicado no escândalo. No ano seguinte, foi a vez de uma bombástica greve de caminhoneiros desencadear ondas de choque que se espalharam pelos mais variados setores e lançaram de novo o país na inatividade. Neste momento, os casos oficialmente reconhecidos de contaminação por coronavírus e os mais de 600 suspeitos ameaçam repetir tal fenômeno. “É algo psicológico”, diz a economista Alessandra Ribeiro, da consultoria Tendências. “Já vimos isso acontecer antes. Uma vez passado o problema e normalizada a situação, a confiança de empresários e investidores não volta. Como consequência, vem a estagnação.”

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    A epidemia do Covid-19 tem, de fato, afetado a economia. As companhias aéreas vêm cancelando voos e vendo a ocupação de suas aeronaves diminuir, a maior operadora de turismo do país enfrentou queda de 28% em suas ações, exportadoras de commodities como minérios e produtos agrícolas para o gigante da Ásia assistem à contração nos despachos, e fabricantes de produtos que dependem de matérias-primas vindas da China têm lidado com interrupções nas entregas. O gigante coreano de eletrônicos LG, por exemplo, fechou sua fábrica em Taubaté por dez dias por falta de peças para montar produtos. “Esse é um problema que afeta principalmente empresas que trabalham com baixo estoque de matéria-­prima. Mas temos notícia de que os fornecedores já voltaram ao trabalho e devem regularizar o envio”, afirma Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). Pesquisa recente feita pela entidade entre seus associados mostra que apenas 4% das companhias do setor foram afetadas por paralisações provocadas pela falta de insumos.

    FÁBRICA LG FÉRIAS COLETIVAS CORONAVÍRUS
    PARADA TÉCNICA - Fábrica da LG, em Taubaté (SP): dez dias sem produzir (Rogério Marques/Futura Press)

    A situação, entretanto, ganha um tom sombrio quando tais efeitos isolados se mesclam com circunstâncias bastante específicas da realidade. Por isso, a revisão em série das projeções para o crescimento do Brasil acontece na crença de que, passada a crise, o empresariado não terá ânimo para retomar suas atividades. Assim, após a divulgação de que o Brasil crescera apenas 1,1% em 2019 — abaixo das expectativas dos economistas —, várias instituições financeiras reduziram para menos de 2% a estimativa de alta do produto interno bruto (PIB) em 2020. Por outro lado, nenhuma das projeções prevê um crescimento menor que no ano anterior. “O vírus não vai abortar o crescimento”, diz o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central.

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    Um ponto importante na discussão sobre os rumos da economia brasileira é que há algum tempo o Brasil não cresce como deveria. Em 2017 a expansão foi pífia, assim como em 2018 e 2019. Se, em 2020, o país não crescer 2%, como foi prometido pelo ministro Paulo Guedes, não será por culpa do vírus, mas porque simplesmente o governo não consegue aumentar a produtividade da economia. “O coronavírus traz uma situação de incerteza, mas não é nenhuma tragédia. Encaramos muitas epidemias no passado e soubemos nos sobrepor a elas. A expectativa é que esta seja absorvida como todas as outras”, afirma Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento.

    O Palácio do Planalto e o Congresso Nacional já dispõem de armas para tirar o Brasil do marasmo. Há catorze reformas em tramitação — sem contar a administrativa, que está engavetada no gabinete do presidente Jair Bolsonaro. E uma — garantem os economistas — é a mais importante neste momento. Trata-­se da Proposta de Emenda à Constituição nº 186, de 2019 — mais conhecida como PEC Emergencial —, entregue por Paulo Guedes ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), no fim do ano passado. Ela contém a chave para evitar novas crises fiscais no Brasil, seja no âmbito federal, seja no estadual. Sem sua aprovação, já estão dados como certos o fracasso da contenção dos gastos públicos e o estouro do teto de gastos em, no máximo, dois anos. Se a crise do coronavírus pegou a classe política no contrapé devido ao ano legislativo curto — no segundo semestre, deputados e senadores estarão focados nas eleições municipais —, a aprovação dessa emenda à Constituição deveria ser, no mínimo, uma prioridade de todos. “O ideal é que pelo menos a PEC Emergencial seja aprovada”, diz Marcos Mendes, pesquisador do Insper. “Se outras medidas avançarem — como a que dá autonomia ao Banco Central (leia mais na pág. 62) —, o governo e o Congresso mostrarão que estão comprometidos com a segurança econômica do país”, conclui. O matemático criador do cisne negro oferece em sua própria teoria uma saída para o atoleiro de dúvidas. Para Taleb, a normalidade só retorna quando se deixam de lado as elucubrações e análises e se parte para a ação.

    Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677

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