“É melhor ser temido do que amado.” A frase de Nicolau Maquiavel em O Príncipe, ensaio sobre o poder escrito em 1513, aplica-se como luva a Mohammed bin Salman, o truculento príncipe herdeiro e mandante de fato da Arábia Saudita. O golpe de sua mão pesada na segunda-feira 9 repercutiu no mundo inteiro: em pleno derretimento dos mercados financeiros por causa do novo coronavírus, MBS, como é chamado, multiplicou a oferta de petróleo do país, dono das maiores reservas do planeta. A manobra fez o preço do barril, que já estava lá embaixo, despencar de vez — chegou a 35 dólares, o fundo do poço que não alcançava desde 1991. Por que o príncipe deu esse aparente tiro no próprio pé? Para encostar na parede a Rússia, seu concorrente mais direto. Dias antes, os quinze grandes produtores de óleo bruto reunidos na Opep haviam aprovado um corte conjunto da oferta diária de 1 milhão de barris/dia, como forma de se proteger contra a queda abrupta da demanda asiática, puxada pela China. A Rússia, que não é do grupo, foi contra.
Enquanto todos os outros produtores prendem a respiração (inclusive o Brasil — a Petrobras perdeu em um dia quase 30% de seu valor de mercado), analistas debatem o real propósito do fim de uma longa trégua entre os dois gigantes na batalha por mercados. A maioria vê uma manobra de reposicionamento — com a demanda em queda, quem chegar primeiro, com descontos e barris disponíveis, ganhará, e a Arábia Saudita saiu na frente. Outra intenção seria tumultuar a indústria de óleo de xisto, que fez com que os Estados Unidos passassem de importador a maior exportador mundial. As empresas desse segmento são pequenas e não suportariam uma guerra de preços prolongada. Todos concordam: o futuro do setor petrolífero neste momento é incerto e arriscado. Dar um susto desses sem ligar muito para as consequências é típico de MBS, autocrata com cara de vilão de desenho animado que manda e desmanda na Arábia Saudita desde que seu pai, o rei Salman, de 84 anos, atropelou a sucessão e o instalou no comando.
Na mesma semana em que torpedeou a indústria do petróleo, o herdeiro deu ordem para prender na surdina, sem comunicado oficial, três possíveis ameaças a seu futuro trono: o tio Ahmed bin Abdulaziz — irmão mais novo, e o único ainda vivo, do rei Salman — e os filhos dele, Mohammed e Nawaf bin Nayef. “Se houvesse alguma justificativa sólida para as prisões, elas teriam sido divulgadas e o caso seria levado à Justiça”, diz Greg Gause, analista do Golfo Pérsico da Texas A&M University. O primo banido Mohammed estava na lista negra porque, se a tradição de os reis passarem o trono para os irmãos tivesse sido mantida, seria ele o herdeiro, depois do pai, e também porque, pré-MBS, foi ministro do Interior e o interlocutor preferencial dos Estados Unidos. O tio Ahmed é outra história. Manifestou apoio ao novo herdeiro e manteve sua posição de prestígio na corte. Viajava com frequência — ao ser detido, tinha acabado de voltar de uma caçada com falcões, o hobby dos royals do Golfo Pérsico.
Sua prisão, e a dos dois filhos, não foi a primeira incursão de MBS contra poderosos sauditas. Logo depois de se tornar herdeiro, confiscou o luxuoso Hotel Ritz-Carlton em Riad e lá confinou centenas de nobres e milionários. Acusados de corrupção, pagaram fortunas para ser liberados. Em seu currículo de atrocidades está a intervenção na guerra civil no Iêmen, que desencadeou uma grave crise humanitária. E, ainda, a mais escabrosa de todas: deu ordem para matar o jornalista Jamal Khashoggi, desmembrar e sumir com seu corpo — Khashoggi era colunista do Washington Post, vivia nos Estados Unidos e fazia oposição ao príncipe. Temido, com certeza, MBS está conseguindo ser.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678