O desfecho não poderia ser outro. Na quarta-feira 11, o economista Marcos Cintra foi demitido da Secretaria da Receita Federal. Saiu caro a sua insistência em criar uma versão da famigerada CPMF — cujas planejadas alíquotas foram antecipadas por VEJA na edição passada. Além de impopular, a ideia de trazer de volta o “imposto do cheque”, embora estivesse supostamente atrelada a uma proposta de desoneração salarial da folha das empresas, sinalizava uma direção equivocada na estratégia destinada a reequilibrar as contas do governo (especialmente para um governo de orientação liberal). A melhor saída não está no aumento de tributos, ainda mais em um imposto que sacrifica a classe média. Mas, sim, no corte de despesas.
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O descalabro das contas públicas, devido a uma máquina inchada e cara, que falha em entregar serviços adequados para a população em áreas cruciais, exige que o país faça com urgência uma reforma administrativa. E um dos caminhos é reduzir drasticamente os gastos com pessoal, que consomem mais de 13% do PIB anualmente e custará cerca de 325 bilhões de reais neste ano. Torna-se urgente modificar as regras do funcionalismo, a fim de despender menos recursos e impedir que o colapso fiscal mantenha a escalada de crescimento. Hoje, muitas categorias de servidores ganham várias vezes mais do que seus equivalentes na iniciativa privada.
Essa pauta incontornável está na mira do Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já diagnosticou que, sem a mudança das regras para o funcionalismo, de nada adiantará se empenhar numa reforma que mexe nos tributos. Sem diminuir o tamanho do Estado, acredita Maia, não se reduz a carga tributária. No momento, a equipe econômica trabalha nos bastidores em uma proposta, ainda em estágio embrionário, para ajustar o arcaico funcionamento administrativo. Desde a promulgação da Constituição de 1988, quando se instituiu a estabilidade aos servidores, a modernização e a racionalização dos gastos da administração pública brasileira não são foco de discussão e de reforma profundas. A demora do governo em apresentar suas ideias para mudanças passa pelo temor de represálias do funcionalismo — notabilizado por sua organização política sólida e barulhenta —, conforme admitiu à reportagem um graduado executivo do Ministério da Economia.
Para chegar a um modelo eficaz, o Executivo estuda sistemas adotados em países desenvolvidos, como o da Holanda, onde o servidor pode ser demitido em caso de performance abaixo do esperado, ou o da Inglaterra, país que pune afastamentos médicos frequentes. Além de experiências estrangeiras, o governo avalia estudos do setor privado e de organizações civis que têm se mobilizado para combater os gastos, que crescem acima da inflação, e a escalada de contratações (veja o quadro).
Uma das propostas de reforma do Estado que está no horizonte governamental é a dos economistas Armínio Fraga e Ana Carla Abrão em parceria com o jurista Carlos Ari Sundfeld. O projeto foi entregue ao secretário de Gestão de Pessoas, Wagner Lenhart, que responde ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Pelo texto, além de equiparar os salários dos servidores aos pagos pela iniciativa privada em cargos semelhantes, o poder público adotaria mecanismos de avaliação para calcar a promoção ou a demissão de servidores, acabando com a possibilidade de ascensão automática e facilitando o desligamento de funcionários. O estudo do trio compreende a criação de análises anuais de desempenho baseadas em planos de metas. Se o servidor amargasse resultados negativos por três anos, defende a proposta, seria demitido. “Numa empresa privada, os funcionários passam por um período de experiência e apenas os melhores são mantidos. Nosso projeto cria métodos de disputa e estimula o bom trabalho nos órgãos públicos”, defende Sundfeld. Uma das premissas do princípio de estabilidade do servidor é proteger a administração de ser instrumento político a cada governo. Nesse sentido, a solução encontrada por Fraga e seus colaboradores foi, além de instalar critérios únicos de avaliação, submeter as análises a órgãos colegiados.
A proposta prevê também a unificação ou a extinção de cargos. “Temos de rever a estrutura. Eu preciso de datilógrafo ou de um funcionário de serviços gerais? Podemos organizar as funções e unificar aquelas que tenham sinergia e similaridade”, diz Ana Carla.
Além dos servidores concursados, outra dor de cabeça das gestões da União, estados e municípios envolve os cargos comissionados. De acordo com o Ministério do Planejamento, apenas em âmbito federal há mais de 23 000 cargos cujos funcionários foram escolhidos a torto e a direito. Uma iniciativa da Fundação Lemann em conjunto com os institutos República e Humanize e a Fundação Brava estabelece critérios para a criação de processos seletivos em órgãos públicos. O projeto visa a atrair profissionais qualificados, que passam por etapas de seleção e entrevistas. O modelo está em vigor em secretarias de oito estados e colhe bons resultados — o que o candidataria a ser examinado pela equipe de Paulo Guedes. O governo de Minas Gerais, por exemplo, já adotou os preceitos das instituições envolvidas na proposta para contratar funcionários comissionados. “Nada melhor do que ter o endosso de especialistas em recursos humanos. No passado, os servidores eram sempre escolhidos por grupos de pressão, que têm mais poder”, afirma o governador Romeu Zema (Novo).
Modificar a estrutura do funcionalismo provoca resistência. Bastou o burburinho sobre eventuais mudanças para que parlamentares alinhados à causa dos servidores se articulassem para barrar o debate. No início deste mês, robustos 235 deputados e seis senadores criaram a Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público, enquanto organizações sindicais se mobilizaram em greves, defendendo a manutenção das regras atuais, além de contratação de pessoal. Na terça 10, trabalhadores dos Correios aprovaram a paralisação da categoria, reivindicando reajuste de salário, manutenção de benefícios e protestando contra a privatização da estatal. O alívio fiscal é o tema principal da agenda de Guedes. Depois de flertar com o aumento do limite do teto de gastos para fechar as contas do ano, o presidente Jair Bolsonaro recuou: “Devemos, sim, reduzir despesas, combater fraudes e desperdícios”, escreveu ele no Twitter. Ao fazer as contas, o governo já pareceu entender que o verbo que deve soar como mantra é “cortar”. O necessário agora é coragem para enfrentar a grita dos servidores e seus aliados.
Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652