O ministro Paulo Guedes tem demonstrado nas últimas semanas inusitados sinais de otimismo. Em seu círculo mais próximo, tem comemorado uma conversa recente com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em que o político revelou seu empenho em dar andamento à Proposta de Emenda Constitucional 110, que propõe a substituição de nove tributos por um imposto. Ao mesmo tempo, tramita na Casa, que reiniciou os trabalhos nesta semana, o projeto de lei do imposto de renda que cria a taxação sobre os dividendos de pessoas jurídicas. Com as duas medidas aprovadas, o ministro poderia se jactar de pelo menos um pedaço da ambiciosa reforma tributária proposta ainda na campanha eleitoral de 2018 ter saído do papel. Apesar do entusiasmo de Guedes, o prognóstico não é tão róseo quanto ele sugere. As chances de um assunto tão complexo ser aprovado às vésperas de uma campanha eleitoral são remotas e, mesmo que isso aconteça, o resultado ficará muito aquém do arrojado projeto capaz de debelar o cipoal tributário brasileiro imaginado pelo ministro. A expectativa era que ele instituísse um modelo fiscal mais justo, moderno e capaz de trazer competitividade à economia. Na prática, continuamos a pagar muitos impostos.
Formado na meca do moderno liberalismo econômico, a prestigiada Universidade de Chicago, Paulo Guedes chegou a Brasília em janeiro de 2019 disposto a mudar o Brasil. Para isso, passou a ter sob seu comando uma superestrutura formada pela fusão de quatro ministérios, uma maneira de manter controle absoluto das decisões econômicas. A ideia era resgatar o espírito animal preconizado pelos liberais e colocar um ponto-final aos voos de galinha da economia brasileira, com seu desempenho errático, taxas de crescimento decepcionantes e estruturas anacrônicas. Prometia implantar nos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro medidas capazes de injetar 3,6 trilhões de reais na economia em uma década. A perspectiva, segundo seus planos, era dobrar o PIB per capita do país até 2030.
A dez meses do fim do mandato, o balanço é desfavorável para o ministro, para dizer o mínimo. Houve avanços como a reforma da Previdência e o governo conseguiu implementar microrreformas, com novos marcos regulatórios para os setores de gás, de transporte marítimo e de saneamento básico. Outro feito foi a aprovação da autonomia do Banco Central, que torna a política monetária brasileira mais confiável aos olhos do mercado financeiro. Mas as grandes mudanças, as que tinham de fato poder de virar o jogo, não aconteceram (e não se pode culpar a pandemia ou o Congresso por essa inoperância). As privatizações, que prometiam render 990 bilhões de reais e tirar do governo a responsabilidade de gerir — de forma quase sempre inepta — empresas públicas, não saíram do papel. A reforma administrativa, fundamental para dar agilidade ao Estado e acabar com privilégios entre setores corporativistas do funcionalismo, chegou a ser entregue ao presidente da Câmara, Arthur Lira, em 2020, mas foi relegada ao esquecimento pela falta de interesse do Executivo em mexer com os servidores. A promessa de levar o país à ribalta do comércio internacional, se transformou em um fiasco completo (veja o quadro).
Os equívocos para um fracasso de tal magnitude são variados. Mas se houve um fator determinante para o naufrágio do projeto liberal de Guedes foi a conduta abilolada do próprio presidente da República. Fiel a sua convicção corporativista, centralizadora, populista e eleitoreira construída nas décadas em que fez parte do baixo clero da Câmara dos Deputados, o presidente foi minando medidas que ele acreditava conflitantes com suas ideias retrógradas e supostamente, em seu raciocínio, ameaçadoras ao projeto de reeleição. Em 2021, em pelo menos duas oportunidades (na troca de comando da Petrobras e na patuscada do 7 de Setembro) ele conseguiu desestabilizar de tal maneira a economia que ele simplesmente inviabilizou o ano. “Muitos votaram em Bolsonaro por causa do Paulo Guedes, que trazia um discurso liberal, promessas de ajuste fiscal, privatizações e uma agenda de reformas. A verdade é que ao longo do caminho isso foi se perdendo”, avalia o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central. “O ministro virou um mero viabilizador dos planos políticos do presidente, embalando seu projeto de uma forma que não parecesse um completo desrespeito aos princípios democráticos.”
Nesse trajeto, Guedes perdeu não apenas as batalhas que os economistas, investidores e analistas de mercado tanto desejavam que fossem vencidas quanto encolheu dentro do governo. Em nome do rigor fiscal, comprou brigas com ministros e apoiadores do presidente que defendiam a gastança desenfreada. Mas, infelizmente, saiu derrotado. Em julho do ano passado, viu o seu poderoso Ministério da Economia ser desmembrado, com a recriação do Ministério do Trabalho. Mais recentemente perdeu o poder de decisão de liberação de recursos do Orçamento, que no ano eleitoral ficará com o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, o expoente do Centrão, grupo que gosta do Estado grande, suas benesses e cargos. Assim, Guedes deixou de ser o protetor do cofre e as contas públicas foram entregues a quem gosta de gastar.
O maior símbolo da pequeneza a que o Ministério da Economia acabou relegado foi a posição secundária de descascar abacaxis como a complicada criação do programa social Auxílio Brasil, visto como de grande potencial eleitoral, mas sem fonte de receita capaz de sustentá-lo. Para resolver a situação, engendrou-se a PEC dos Precatórios, que, entre outras gambiarras, adiou o pagamento de dívidas já transitadas em julgado, deixando a conta para governos do futuro. Com tal golpe, Guedes sepultou de vez o ideário liberal dos mestres de Chicago e a agenda original foi atirada no lixo. Nas últimas semanas, o Executivo voltou a pressionar por projetos que ajudem a baixar de qualquer maneira os preços de mercado dos combustíveis, outra interferência indevida (o Posto Ipiranga do início diria que seria muito mais eficiente privatizar a Petrobras). “Decidi deixar o governo em março de 2021, depois de perceber que a reforma fiscal não era mais prioridade. Entendi que o programa inicial tinha sido deixado de lado”, diz Vanessa Canado, ex-assessora de Guedes para assuntos tributários. “As janelas de oportunidade para aprovar reformas abrem-se e fecham-se no começo de cada governo. A dessa gestão foi definitivamente perdida.”
Num efeito cascata, o rompimento com o modelo liberal e o esvaziamento dos projetos mais caros aos técnicos da pasta tiveram impacto direto sobre o “dream team” convocado por Guedes para o primeiro e segundo escalões do ministério da Economia. A equipe perdeu diversos nomes (veja o quadro). “Durante o período de campanha de Bolsonaro, o discurso a favor da privatização soava como música para os meus ouvidos”, recorda o empresário Salim Mattar, ex-secretário de desestatizações de Guedes. “A certa altura percebi que o establishment não era favorável à redução do tamanho do Estado e à venda de estatais. As resistências vêm de todos os lados: do Congresso, do Tribunal de Contas da União, dos sindicatos, dos funcionários das estatais, do Palácio do Planalto, do entorno do presidente, e por aí vai.”
Pouco compreendido e muito criticado no Brasil, o pensamento liberal ajudou países a enriquecer em séculos passados ou a destravar o potencial de crescimento de suas economias. O fenômeno ganhou força com diversas reformas feitas na segunda metade do século XX, quando Estados nacionais estavam inchados no pós-guerra em razão de governos grandes, burocráticos e custosos demais. Para um país como o nosso, em que falta quase tudo em serviços públicos de qualidade, a receita de um governo menor pode parecer, para alguns, incongruente com as necessidades da população. Ainda mais em um momento tão polarizado quanto o atual, em que existe uma demonização da filosofia liberal. Nada pode estar mais longe da realidade. Ao propor que os investimentos privados tenham primazia em relação aos estatais, além de defender mais concorrência entre empresas, essas propostas ajudam a criar melhores empregos e condições para que as pessoas saiam da pobreza — e não que permaneçam eternamente nessa condição, na dependência de quem controla o dinheiro da União.
O liberalismo, no entanto, vai além de sua vertente econômica, formalizada pelo pai da economia moderna, o filósofo escocês Adam Smith (1723-1790). O pensamento tem origem no Iluminismo do século XVIII, como uma reação ao poder absoluto dos reis. Foi na concepção de liberalismo do pensador francês Montesquieu que surgiu o conceito de poderes independentes, mas harmônicos, algo que as repúblicas modernas buscam seguir até hoje, para desgosto de mandatários que consideram que o Estado precisa se dobrar a suas vontades. “O liberalismo envolve a busca pelo direito individual, e essas ideias acabaram se transpondo à literatura econômica, pregando que o Estado não deve interferir na economia”, defende o economista Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda. “Já o governo Bolsonaro se torna antiliberal quando celebra os tempos da ditadura e elogia torturadores. Confunde liberdade com vileza. A democracia gira em torno da liberdade e Bolsonaro tem uma visão limitada e distorcida dela.”
É claro que um choque liberal não acontece de uma hora para outra, como prometia Guedes. Indústrias nacionais não podem ser colocadas, de forma abrupta, para competir contra fornecedores asiáticos que operam com mão de obra barata, sob o risco de falirem rapidamente. Outro exemplo de açodamento sem sentido seria tirar os direitos dados pelo Estado a cidadãos que dependem deles para sobreviver. Aos poucos, eles podem ser substituídos por benefícios melhores, que exijam uma contrapartida e ajudem a quem recebe a sair daquela condição. Mas nenhum liberal consciente pode defender a interrupção do Bolsa Família ou Auxílio Brasil de idosos, com filhos, sem ocupação e à beira da fome. Aliás, o conceito de renda mínima está totalmente enquadrado no liberalismo. O Estado também deve sair de áreas em que sua presença não seja obrigatória, ao mesmo tempo que cria agências fortes e boas leis capazes de promover a concorrência, baixando, por exemplo, o preço dos combustíveis. Tudo isso leva tempo, mas é possível ser construído.
Existem, no entanto, medidas que não podem esperar. É o caso do combate frontal aos privilégios absurdos de certas castas do serviço público. Recentemente, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma lista de procuradores da República que receberam cerca de 500 000 reais em dezembro, em razão de uma série de vantagens acumuladas. Isso é inadmissível. Num país com tantos pobres como o Brasil, qual a justificativa para um funcionário público, sem nenhuma ação meritocrática, embolsar meio milhão de reais num mês? Outra excrescência é o exagero na cobrança de impostos sobre o consumidor, que pouco recebe em troca, assim como a complexidade bizantina de um sistema tributário e trabalhista que só prejudica os empreendedores. Esses defeitos graves atrasam o Brasil e precisam ser resolvidos.
Houve uma chance recente de enfrentar essas distorções. Ainda em 2019, Guedes foi aconselhado pelos estrategistas políticos no Ministério da Economia a dar andamento a mais de um grande projeto reformista ao mesmo tempo, na esteira da popularidade de Bolsonaro e da “lua de mel” do Congresso com a gestão recém-eleita. O plano apresentado pelo assessor especial Guilherme Afif e pelos secretários Esteves Colnago e Marcos Cintra envolvia aproveitar o bom clima da aprovação da reforma previdenciária para levar à frente as reformas administrativa e tributária. “A administrativa deveria ter sido enviada e aprovada antes da tributária, ainda no fim de 2019. Era o melhor momento para dar prioridade a ela. Acabou não acontecendo”, diz Paulo Uebel, ex-secretário de Guedes e um dos cérebros por trás da proposta de reforma da gestão do Estado. “Neste ano, sendo um período eleitoral, dificilmente será aprovada uma reforma estrutural de relevância.”
Atualmente, brinca-se jocosamente no Congresso Nacional que o café do ministro da Economia está gelado, uma analogia feita ao fim de governos. Sim, está bem frio. Não é que Guedes esteja de volta às caminhadas pela Praia no Leblon e não tenha nada a apresentar. Nos últimos dias, ele comemorou que o setor público consolidado — incluindo União, estados, municípios e estatais, com a exceção de Petrobras e Eletrobras — fechou 2021 com superávit de 64,7 bilhões de reais, o primeiro resultado positivo em sete anos. Foi, de fato, uma boa performance, mesmo considerando que o efeito decorre mais da inflação do que de uma excepcional gestão. Mas ainda assim é pouco. Não apenas diante do prometido e do desejado para o desenvolvimento do Brasil, mas também do que era possível ser feito e, neste ano de eleição, não mais será.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775