Um dos benefícios de quem tem plano de saúde, o reembolso de despesas médicas cresceu de forma surpreendente nos últimos anos. Se, em 2019, o montante era da ordem de 6 bilhões de reais, o volume passou para quase 11 bilhões de reais em 2022, um crescimento que não se compara aos 20% de variação geral das despesas assistenciais. A explicação para tamanha disparidade, segundo a Associação Brasileira de Planos de Saúde, a Abramge, está em métodos adotados por diversas clínicas para fraudar o sistema de saúde na forma de exames superfaturados e, em muitos casos, desnecessários. A entidade calcula que o valor drenado do mercado com ressarcimento irregular tenha beirado 4 bilhões de reais só em 2022.
Com os indícios de crimes, diversas operadoras de planos de saúde têm buscado a Justiça para bloquear os reembolsos a clínicas de modus operandi suspeito. Um exemplo disso é o das clínicas do grupo HealthSculp, das quais fazem parte as bandeiras MedSculp e PrimeSculp. Ex-funcionários do grupo relataram a VEJA que é prática comum o superfaturamento de exames e a requisição de login e senha dos usuários dos planos. “Um simples exame de sangue pode chegar a 30 000 reais. Eles vendem uma imagem de medicina preventiva, mas na verdade só querem que o paciente faça mais e mais exames”, diz uma dessas fontes. “Os médicos, muitos deles novatos, acabam aceitando participar desse esquema em troca de uma porcentagem sobre os valores dos exames.” Em uma simulação de conversa com um atendente da MedSculp é mencionada a assinatura de um termo de compromisso para que a clínica tenha acesso aos dados de login e senha do plano de saúde do cliente e possa, assim, solicitar o reembolso dos exames. Em alguns casos, para driblar o crivo das operadoras dos planos, a clínica requisita o pagamento prévio do serviço ao cliente via Pix, devolvendo a quantia na sequência, mas usando o comprovante para pressionar o plano a realizar o reembolso.
As clínicas atraem o consumidor com a promessa de agilizar o atendimento de exames e com o reembolso de procedimentos que não necessariamente estão incluídos no rol do plano de saúde. O principal método utilizado pelos fraudadores é a elevação do preço das consultas acima do limite reembolsável, dividindo a cobrança em vários recibos que simulam atendimentos mais baratos que nunca foram realizados. Esse desvio gera inflação do contrato do usuário em reajustes futuros — em caso de plano de saúde empresarial, o artifício pode elevar “a conta” de todos os contribuintes. “Hoje, 88% dos planos são coletivos. Quando há fraude no valor de exames, a empresa que assina o benefício para o funcionário acaba tendo uma majoração do que ela paga. Isso, por fim, aumenta o reajuste do plano coletivo”, afirma Cassio Ide Alves, superintendente médico da Abramge.
Outro método da fraude, o compartilhamento de login e senha dos planos, dá a clínicas mal-intencionadas acesso a todos os dados do cliente, podendo levar até à abertura de contas bancárias à revelia do usuário. Um caso desse tipo foi mapeado pela operadora SulAmérica e envolve empresas de bairros nobres de São Paulo: a clínica S’Agapo, o laboratório Mitros Lab e o banco Theos Bank, que não tem registro no Banco Central. “As pessoas, na maioria das vezes, nem sabem que existe uma conta aberta no nome delas e muito menos que houve movimentação financeira. Até agora a gente já tem mais de 20 milhões de reais identificados só nessa fraude desse prestador”, diz a CEO da SulAmérica, Raquel Reis. Ela avalia que ao menos 30% das solicitações de reembolso envolvam fraude.
Em entrevista a VEJA, o CEO e fundador da HealthSculp, Luiz Felipe Reis, admite que a empresa solicita login e senha de seus pacientes para “facilitar” o pedido do reembolso, mas negou que sua empresa obtenha ganhos financeiros com essa prática. As outras empresas citadas não foram localizadas pela reportagem. De 2018 a 2022, a Federação Nacional de Saúde Suplementar, a FenaSaúde, viu o número de denúncias-crimes relacionadas a fraude no mercado subir 43%, para 1 728 ações. Se a impunidade impera no campo das clínicas, os usuários dos planos estão mais sujeitos a responder pelas fraudes. Em março deste ano, o banco Itaú demitiu oitenta funcionários alegando o uso indevido dos planos de saúde. Caso semelhante aconteceu com o Grupo CCR, que desligou cerca de 100 funcionários após uma investigação interna ter apontado que fraudes ao sistema geraram um custo adicional superior a 12 milhões de reais em cinco anos para a companhia. Uma autêntica dor de cabeça.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851
Em comunicado conjunto enviado a VEJA, após a publicação da reportagem, as empresas Sagapo e Mitros afirmaram que “desde janeiro de 2023, decidimos não mais realizar esse tipo de atendimento [reembolso assistido], cabendo ao paciente a responsabilidade de pedir eventual reembolso ao qual possa ter direito” e que “jamais compartilhamos login, senha ou quaisquer dados pessoais dos nossos pacientes”.
A íntegra do posicionamento: “As empresas S’Agapo e Mitros são laboratórios de análises clínicas, não clínicas médicas. Estas prezam pela excelência no atendimento, oferecendo serviços de alta qualidade, inclusive com atendimento domiciliar. Sua política de preços é estabelecida com base em seu padrão de excelência, refutando a alegação de superfaturamento. Ambas operam de forma independente, não aceitando atendimento por planos de saúde devido à remuneração não adequada. Nenhum serviço é cobrado sem ter sido realizado ou requisitado por profissionais habilitados. Todos os valores cobrados são detalhados e acompanhados de Notas Fiscais. Não há compartilhamento de dados pessoais dos pacientes. Quanto ao procedimento de reembolso assistido, este foi descontinuado em janeiro de 2023, cabendo agora aos pacientes solicitar o reembolso diretamente, caso desejem utilizar seus planos de saúde. Reafirmamos nosso compromisso com a ética e a transparência em nossas práticas, seguindo rigorosamente as normas e regulamentações do setor de análises clínicas.”