Quando abriu os trabalhos do Legislativo, no início de fevereiro, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou que buscaria elevar o Parlamento a um patamar há muito não visto. Depois de exaltar o trabalho da Casa na aprovação da reforma da Previdência, voltou a destacar o papel do Congresso no andamento da agenda econômica do país e alçou-se a dono da pauta. “O Congresso está passando a ocupar um lugar que é seu por direito”, cravou. Sua atuação neste início de ano fez ressurgir um termo que não era mais usado na capital federal: parlamentarismo branco. Maia tem reforçado a necessidade de aprovar reformas estruturantes em 2020 e, sempre que possível, deixa clara sua insatisfação com a lentidão do Executivo para enviar os textos com as mudanças nas áreas administrativa e tributária — duas das mais importantes Propostas de Emendas à Constituição (PECs) a ser debatidas neste ano.
O anseio de Maia por aprovar rapidamente as reformas, entretanto, parece não encontrar eco no Palácio do Planalto. Fenômeno muito parecido aconteceu durante os processos da reforma da Previdência, na qual o presidente da Câmara colheu muitos louros, e da aprovação do Orçamento Impositivo, que reduziu em boa medida o poder de barganha que o presidente Jair Bolsonaro detinha para negociar com os parlamentares. Bolsonaro tem se queixado de que não quer ficar refém do Legislativo — e sua equipe engrossa o coro. Numa reunião na terça-feira 18, o chefe da Segurança Institucional, Augusto Heleno, elevou o tom. “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente”, disse, antes de emendar um palavrão. “Uma pena que o ministro, com tantos títulos, tenha se transformado num radical, ideológico, contra a democracia, contra o Parlamento”, devolveu Maia. A realidade, porém, não é confortável para Bolsonaro e seus ministros: o governo está, sim, nas mãos do Congresso. “Maia percebeu um vácuo de poder e ocupou esse espaço. Ele viu a necessidade de implementar essa agenda, por parte até mesmo de um certo clamor da sociedade, e está comprometido com as reformas”, diz o cientista político Sergio Fausto.
Na última batalha travada pelo presidente e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, a reforma administrativa quase subiu no telhado. Trata-se de uma pauta essencial para o controle das contas públicas e para a eficiência do governo — e está pronta desde o fim do ano passado. Bolsonaro, que não demonstra muito apreço pela mudança, vem alegando que este não é o timing político para apresentá-la (e as recentes frases de Guedes sobre parasitas e domésticas irem à Disney só complicaram a situação). De fato, sua tramitação é complicada em razão das pressões de funcionários públicos, mas ela precisa sair do papel, para o país inaugurar uma nova era. “O funcionalismo consome parte expressiva do PIB. A reforma administrativa diz respeito à entrega de resultados pelo Estado e tem impacto fiscal relevante a longo prazo”, afirma Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
Na última semana, Guedes e a equipe comandada pelo secretário de Desburocratização, Paulo Uebel, trabalharam dia e noite e deixaram o texto final na mesa do presidente na terça-feira, mas não adiantou. Bolsonaro ainda tentou afagar o ministro, garantindo sua permanência até o fim de seu mandato, porém até a quinta 20 ainda não havia batido o martelo. Mesmo que torça o nariz para as reformas, o presidente sabe da importância da agenda de seu ministro para que o país restabeleça um ritmo de crescimento robusto — com a economia de vento em popa, uma possível reeleição em 2022 seria um movimento natural. O temor no círculo palaciano é que uma ação desconcertada produza uma convulsão social tal como as que aconteceram no Chile no ano passado e a que ocorre atualmente na França. Dois militares de alto escalão dentro do Planalto, Jorge Oliveira e Luiz Eduardo Ramos, não têm poupado o presidente de alertas sobre o eventual desgaste de aprovar a matéria. Eles entendem que a maior greve já enfrentada pela Petrobras — petroleiros estão de braços cruzados desde 1º de fevereiro — pode extrapolar para outros grupos, como auditores fiscais, policiais federais e até mesmo caminhoneiros. Por isso Bolsonaro, uma vez que será obrigado a encaminhar as reformas, tem procurado melhorar a articulação.
A solução encontrada para encampar a reforma administrativa envolve duas trocas. Na primeira, o presidente promoveu acertadamente Rogério Marinho a ministro do Desenvolvimento Regional. O novo chefe da pasta, agora, terá poder de barganha ao liberar verbas para obras de nichos eleitorais e amealhar apoio para a agenda econômica. Na outra, Bolsonaro inchou ainda mais a participação militar na alta cúpula ao nomear o general Walter Braga Netto como ministro da Casa Civil — cuja articulação política era claudicante desde a gestão de Onyx Lorenzoni. Ainda pouco se sabe sobre como será a atuação do militar, que comandou a intervenção federal no Rio de Janeiro de fevereiro de 2018 a janeiro de 2019. O trânsito político do general é uma incógnita, e membros da equipe econômica temem que a influência de Braga Netto mine a tarefa diária de Guedes de trazer Bolsonaro para o liberalismo econômico.
Desde a primeira Constituição republicana, datada de 1891, o Brasil adotou o sistema presidencialista. Ou seja, o presidente do Executivo acumula as funções de chefe de Estado e de governo. Ele é o responsável por escolher os ministros, definir o Orçamento e todas as funções relacionadas à execução das políticas públicas. Os outros poderes, Legislativo e Judiciário, funcionam em harmonia com o Executivo, em um sistema de freios e contrapesos. Sempre que a balança pende para qualquer um dos lados, algo ruim acontece. Dos últimos cinco presidentes eleitos, por exemplo, dois foram retirados do Palácio do Planalto justamente por terem perdido apoio político e o protagonismo na condução do país. Quando um desses cinco presidentes concentrou poder demasiado em suas mãos, coordenou dois dos maiores casos de corrupção da história do país. O ano mal começou, e o governo segue paralisado nas decisões econômicas. Em tal cenário, o Congresso busca aumentar sua influência. Enquanto a balança não se reequilibra, o Brasil, infelizmente, espera.
Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675