O flerte a regimes totalitários ao redor do mundo trouxe de volta à cena diversas obras distópicas. Não se surpreenda se, ao espiar a lista das ficções mais vendidas no ano, você se deparar com velhos conhecidos como A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell; Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Se esses livros reivindicam ano após ano seus lugares na eternidade, o mesmo não pode se dizer das livrarias. Com a decadência de Saraiva e Cultura, pioneiras no modelo de megastore no país, o mapa do mercado está sendo redesenhado. Para evitar a bancarrota de todo esse ecossistema, fundamental para as editoras exporem seus lançamentos, diversas campanhas de crowdfunding (financiamento coletivo) foram lançadas nos últimos meses com o intuito de suprir, ao menos em parte, as necessidades de pequenas livrarias e editoras que, a despeito do bom trabalho que desempenhavam, sofreram as duras consequências da pandemia de coronavírus.
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Clique e AssineCom as recentes crises econômicas, o setor editorial viu seu faturamento encolher 20% entre 2006 e 2019, ano em que as vendas ensaiaram uma retomada. Como se as páginas escritas nesse livro já não fossem trágicas o bastante, a Covid-19 acelerou essas perdas. No primeiro semestre de 2020, o volume de livros vendidos no país retraiu 12,28%; em receita, a perda foi de 11,7%, para 729 milhões de reais. Os números são da Nielsen BookScan, em pesquisa realizada com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, o Snel. Os valores poderiam ser piores, mas as vendas on-line mitigaram os prejuízos. Os espaços físicos de portas fechadas, sobretudo nos meses de março a maio, forçou à criatividade das livrarias, que encontraram no WhatsApp uma escapatória. “Essa venda pelo WhatsApp, neste momento, está substituindo o atendimento presencial. Nós fazemos o atendimento mesmo, com consultoria e enviando fotos dos livros para o cliente. A experiência de compra é quase a mesma em relação ao que seria na nossa loja”, diz Elisa Ventura, proprietária da rede de lojas Blooks.
Maior livraria do país em número de lojas, são 73, a Leitura impulsionou seu e-commerce e as vendas pelo formato de delivery por meio do WhatsApp. Mesmo assim, o impacto da pandemia para seus negócios será de uma perda acima de 20% de seu faturamento no ano. “Nossa venda no e-commerce multiplicou por quatro vezes durante a pandemia. Mesmo assim, fomos impactados pelo fechamento das lojas e, agora, estamos tendo que recorrer aos bancos”, afirma Marcus Teles, diretor-executivo da rede. “Cerca de 70% das nossas vendas pelo modelo de delivery estão sendo feitas pelo WhatsApp”. Teles garante, no entanto, que seu plano de expansão para o ano está mantido. A Livraria Leitura deve inaugurar mais sete operações este ano. Assim como ela, as redes Livraria da Vila, a Travessa e a Livrarias Curitiba crescem, ainda que de forma mais modesta, e se postulam a ocupar a vacância deixada pela Saraiva no imaginário do consumidor.
Outrora quem dava as cartas no mercado, a Livraria Saraiva vive um calvário. Com dificuldades de arcar com compromissos de sua recuperação judicial, a rede vê suas lojas definharem. Por conta de atrasos nos pagamentos aos credores, diversas editoras entraram com uma ação na Justiça para recolherem os títulos que estão consignados à varejista. Com a expectativa de levantar ao menos 277 milhões de reais e mitigar os danos acentuados pela pandemia, a Saraiva informou ao mercado o plano de se desfazer de metade de suas lojas, são 61 atualmente. Para isso, a operação se dividiu em dois grupos, cada qual com três blocos de unidades espalhadas por diversas regiões do país. As editoras, que poderiam se interessar pela administração desses ativos, consideram os valores pedidos pela Saraiva fora do normal. A empresa terá que anunciar as propostas recebidas nas próximas semanas. Para piorar, em junho, a varejista viu uma debandada em seu conselho de administração. Recentemente, Olga Maria Barbosa Saraiva assumiu a presidência do conselho; com seu filho, Jorge Saraiva Neto, ocupando a posição de vice-presidente. As dívidas da empresa totalizavam 675 milhões de reais quando pediu recuperação judicial.
Em situação delicada, a Cultura, uma das principais referências do mercado editorial, apresentou uma proposta de alteração em seu plano de recuperação judicial recentemente. A varejista informou, à época, que pagou 10 milhões de reais dos 285 milhões de reais informados quando deu entrada no pedido de recuperação em outubro de 2018. Agora, almeja renegociar o pagamento de suas dívidas. A primeira assembleia geral para discutir o aditivo ao plano apresentado pela empresa será no dia 18 de agosto. Para os credores fornecedores incentivadores 1 (aqueles que tenham celebrado com a empresa contratos de fornecimento de produtos entre 1º de dezembro de 2018 e até 30 dias depois da homologação do plano de recuperação judicial), a proposta apresentada no aditivo é que os créditos sofram um deságio de 80% e de que o saldo seja pago em 30 parcelas trimestrais. Para os credores fornecedores incentivadores 2 (aqueles que não interromperam o fornecimento de produtos após a data do pedido de RJ), o que a empresa propõe é deságio de 70% e saldo parcelado em 21 trimestrais. Para diminuir a fricção com os credores, a Cultura aderiu a um mecanismo que repassa o crédito à conta das editoras no momento de uma venda.
Para Marcos da Veiga Pereira, presidente do Snel e sócio-diretor da editora Sextante, o mercado varejista de livros terá de se reinventar depois da pandemia de Covid-19. Mesmo com a leve recuperação das vendas nos últimos meses — muito puxada pelos marketplaces on-line como Amazon, B2W e Magazine Luiza –, o cenário de declínio do ponto de venda físico acende um sinal de alerta para a sobrevivência do mercado. “Nós nunca percebemos o quanto a livraria física é fundamental no momento de um lançamento. Todos os livros que lançamos na Sextante durante a pandemia tiveram um desempenho abaixo do esperado. Nós imaginávamos que os livros pudessem se tornar conhecidos pelas mídias sociais, mas isso não foi suficiente”, diz. “A livraria ainda tem o papel de tornar os livros conhecidos, porque é nela que as pessoas vão procurar as novidades. Talvez a solução para esse mercado seja voltar a ser um local mais acolhedor, com bons serviços e atendimento. As livrarias precisam investir mais na profissionalização, com escolas de preparação, centros de treinamento de livreiros.”
O futuro do mercado livreiro talvez seja investir mais em curadoria e segmentação. Algumas lojas independentes surgem e fidelizam seu público em pouco tempo. É o que acredita Elisa Ventura, da Blooks. “As livrarias precisam ter uma identidade. Não é só vender o livro, porque nesse sentido a Amazon se tornará cada vez mais insuperável. As livrarias que vão ficar no futuro são aquelas que têm propósito, as que o consumidor se identifica. Àquela coisa de livraria com mais de 2.000 metros quadrados acabou”, diz. Com o fechamento das lojas para evitar o contágio por Covid-19, a Blooks criou seu e-commerce e, mais recentemente, lançou uma campanha de financiamento coletivo no site Benfeitoria. Intitulada Blooks Resiste, a empresa conseguiu arrecadar mais de 44.000 reais em poucos dias de campanha. A ideia é usar o dinheiro como capital de giro e, com isso, não demitir funcionários neste momento. Apenas uma das seis lojas da rede foi reaberta até o momento.
Alexandre Martins Fontes, proprietário de duas livrarias e da editora que leva seu sobrenome, é um dos que têm uma história feliz para contar. Para sua surpresa, tanto a livraria como a editora cresceram em meio à tempestade. “No mês de maio, nós quadruplicamos as vendas da internet e, em junho, triplicamos”, disse. O que impulsionou as vendas no período de lojas fechadas foi, claro, a web, mas sobretudo a adoção do WhatsApp para ofertar seus produtos aos clientes já fidelizados. Neste momento, sua tradicional loja, que ocupa um grande espaço na Avenida Paulista, está vendendo 50% do que seria considerado normal para a época do ano. Ele encabeça, ao lado de entidades como Snel, Associação Nacional das Livrarias (ANL) e Câmara Brasileira do Livro (CBL), o projeto Retomada das Livrarias, que arrecada doações do mercado e de pessoas físicas, por meio do portal Kickante, que serão destinadas a 50 unidades pequenas, espalhadas pelo país, que tiveram suas atividades afetadas pela pandemia. Outro fundo de doação com o intuito de partilha de receita entre editoras, livrarias e autores independentes é o +Livros. Hospedado no portal de arrecadação Catarse, já amealhou mais de 460.000 reais. O engajamento coletivo pela sobrevivência do mercado denota não um final feliz, mas uma história sem fim.