Já é bem menor a resistência à autonomia operacional do Banco Central (BC), mas agora se defende o seu duplo mandato: uma meta para a inflação e outra para o emprego. Trata-se de ideia inspirada no Federal Reserve (Fed), o banco central americano. É um equívoco.
Levamos quase meio século para aceitar a necessidade de um banco central, e mais algumas décadas para admitir sua autonomia. Entre os anos 1920 e 1960, as funções de um banco central — redesconto, depósitos compulsórios dos bancos, fiscalização bancária, entre outras — eram exercidas pelo Banco do Brasil. Ao redescontar nele mesmo os seus empréstimos, o BB criava moeda e gerava inflação. Também fiscalizava seus concorrentes e, assim, tinha acesso à sua contabilidade e às suas operações. O BB, poderoso, mobilizava forças contra a criação do BC.
Em 1945, optamos por um passo intermediário, o da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), cuja missão era preparar a criação do BC. Na América Latina, o Brasil foi um dos últimos países a ter um banco central. À nossa frente estiveram a Colômbia (1923), o Chile (1925), a Bolívia (1928) e a Argentina (1935).
Em 1963, no contexto das chamadas “reformas de base”, o governo João Goulart propôs a medida ao Congresso. O regime militar negociou alterações no projeto, do que resultou a Lei 4595, de 31/12/64. O BC nasceria no dia 1º/4/1965 com mandatos fixos para seus diretores, não coincidentes com o do presidente da República, norma necessária para garantir sua autonomia.
A regra não sobreviveu à mudança de governo em 1967 e foi revogada em 1974. Os diretores são demissíveis a critério do governo. Mesmo que tenhamos evoluído nesses quase 54 anos, ainda há os que resistem usando teorias conspiratórias: sem conhecimento, dizem que o BC trabalha em favor dos bancos, e não da sociedade.
O sucesso do Plano Real contribuiu para inovações institucionais no governo FHC, incluindo o regime de metas para a inflação. A autonomia do BC aconteceu na prática, mas há espaço para ser anulada por pressão política, como ocorreu na gestão de Dilma Rousseff.
A respeito do duplo mandato do Fed, previsto em lei, documentos oficiais dizem que “o nível de emprego é em grande parte determinado por fatores não monetários, que mudam ao longo do tempo, e pela dinâmica do mercado de trabalho”. Há uma meta para a inflação anual (2%), mas não para a taxa de desemprego, que é apenas estimada (hoje entre 4% e 4,6%). O Fed busca mitigar riscos tanto para a inflação quanto para a estimativa do desemprego no país.
Quem defende o duplo mandato interpreta mal essa realidade e não percebe que o BC já adota a mesma linha do Fed, a do “balanço de riscos”. A taxa de juros é ajustada de acordo com os riscos, para a inflação ou para o desemprego.
O projeto de lei sobre a autonomia formal do BC está sob apreciação do Congresso. Seria triste se esse grande avanço viesse atrelado ao duplo mandato. Pode resultar em mais inflação e mais desemprego.
Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613