Há um ano, uma avalanche de rejeitos provenientes da Barragem 1 da mina Córrego do Feijão soterrou centenas de pessoas na cidade mineira de Brumadinho. Funcionários da Vale, moradores dos arredores da instalação e até turistas em férias nas pousadas da área morreram na enxurrada de lama sem nenhum aviso prévio. Para se ter uma ideia da dimensão e complexidade do desastre, na terça-feira 4 foi encontrado um crânio daquela que deve vir a ser a 260ª vítima da tragédia — caso a identificação seja positiva, ainda restarão dez desaparecidos. Hoje, nos tribunais, a mineradora é acusada de negligência, crime ambiental, homicídio doloso e de ser responsável pelo impacto que o desastre causou a investidores mundo afora. E é justamente esse último grupo que deverá receber a maior parte das indenizações que a empresa estima desembolsar. No departamento jurídico da Vale, calcula-se que as cifras a ser pagas pela companhia a investidores que entraram com ações coletivas contra a mineradora na Justiça dos Estados Unidos cheguem a pelo menos 5 bilhões de dólares, o equivalente a mais de 21 bilhões de reais. No Brasil, a realidade é outra. A Vale firmou, até agora, 5 921 acordos com familiares de trabalhadores vitimados na tragédia. Segundo a empresa, 107 000 moradores da cidade estão recebendo auxílio emergencial mensalmente. Para esses fins, a mineradora provisionou recursos de 2,8 bilhões de reais, cerca de um sétimo do que os investidores lesados nas bolsas americanas — e seus advogados — deverão obter.
Pouco mais de dez escritórios de advocacia nos Estados Unidos processam a Vale em nome dos investidores estrangeiros. Mesmo que as ações da mineradora estejam com cotação próxima à dos dias anteriores ao derramamento de lama em Brumadinho — 53 reais —, eles querem reaver as perdas que os acionistas tiveram nos doze meses depois do acidente. A acusação é que a companhia e seus executivos produziram e disseminaram informações enganosas sobre o risco e dano potencial do rompimento da barragem. O Pomerantz LLP, um dos escritórios que acionaram a mineradora, inclusive, é conhecido por ter coordenado ações coletivas contra a Petrobras nas cortes americanas e conseguido um acordo de 2,95 bilhões de dólares contra a estatal devido à Lava-Jato. Os processos também miram o ex-CEO da Vale Fabio Schvartsman e o diretor de relações com investidores da empresa, Luciano Siani Pires.
Antes do rompimento, Schvartsman gabava-se, em teleconferências com investidores, da reestruturação que teria promovido à frente da companhia após outra tragédia, a de Mariana. Muito do resultado positivo que a mineradora apresentava em seus números vinha do aumento ostensivo no volume de produção de suas minas. A barragem em Brumadinho, por exemplo, operava com risco de rompimento vinte vezes maior que o limite aceitável, segundo um laudo de peritos criminais da Polícia Federal em Minas Gerais divulgado em 27 de janeiro. E a Vale havia sido notificada dos riscos pela engenheira Maria Regina Moretti, da consultoria Potamos, mas ignorou as orientações.
Em paralelo às ações nos Estados Unidos, o Ministério Público de Minas Gerais também se posicionou sobre o caso. Em 20 de janeiro, Schvartsman e outras quinze pessoas foram indiciados por crime de homicídio doloso, aquele em que há a intenção de matar. Na lista de acusações constam ainda os crimes de falsidade ideológica e de uso de documentos falsos, de acordo com a Polícia Federal. Entre os indiciados estão seis pessoas ligadas à consultoria Tüv Süd e sete funcionários da Vale. O inquérito, que conta com 27 volumes e cerca de 6 500 páginas, acusa os funcionários de omitir e deturpar informações sobre a real situação da barragem em pelo menos duas ocasiões.
Enquanto a empresa contabiliza perdas, os impactos da tragédia ganham contornos ainda mais amplos. Na semana passada, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que o desastre fez a produção industrial do país recuar 1,1% em 2019. “Tiveram grande peso nesses resultados negativos os efeitos na indústria extrativa, em decorrência do rompimento da barragem de Brumadinho”, disse em nota André Macedo, gerente da pesquisa. À época do ocorrido, a Vale suspendeu a produção em diversas instalações no Brasil. Some-se a isso o fim das atividades de barragens semelhantes de outras mineradoras espalhadas por todo o país, por questões de segurança. Apesar do esforço da companhia, Brumadinho se tornou um espectro do qual a Vale tão cedo não vai se livrar.
Atualização de 11h30 de 7 de fevereiro de 2020
Após a veiculação da matéria no site de VEJA, a Vale publicou um posicionamento por meio de Comunicado ao Mercado nos sistemas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A nota diz que não há qualquer provisão ou estimativa de valores relacionados a reclamações de investidores estrangeiros acerca do desastre de Brumadinho. “Na verdade, ao longo de 2019 a Vale provisiou mais de 4 bilhões de dólares para reparação e indenizações a serem feitas, exclusivamente no Brasil”, diz a nota. “As ‘complaints’ (reclamações) de investidores estrangeiros foram consolidadas em uma única class action (ação coletiva), da qual o escritório Pomerantz LLP, citado na matéria desistiu de participar. A empresa entende não haver mérito na ação e se defenderá no momento e forma adequados. Não existem valores atrelados ao pedido da class action.” A nota ainda faz referência às vítimas da tragédia de Brumadinho. “A Vale reforça seu compromisso com a reparação dos danos causados aos familiares das vítimas e aos afetados pelo rompimento da barragem de forma efetiva e abrangente”, finaliza a empresa.
Publicado em VEJA de 12 de fevereiro de 2020, edição nº 2673