O filho de um amigo é negro. Outro dia, na escola, a professora chamou sua atenção e disse: “Você está na minha lista negra”. Meu amigo fez uma reclamação à coordenadora da escola, por entender que a expressão é racista. Por que a lista pior é “negra”? Palavras e expressões racistas fazem parte do repertório cotidiano sem que, muitas vezes, a gente tenha consciência do que realmente está dizendo. “Denegrir”, segundo uma rápida pesquisa no Google, é a “ação de difamar, manchar a reputação de alguém”. Vem do latim denegrire, que significa tornar negro. Agora, por que tornar negro seria igual a difamar? De acordo com algumas discussões etimológicas, mulata, então, nem se fala. Viria de mula, cruzamento de asno com égua (há outra corrente segundo a qual a palavra mulata poderia ter se originado do termo árabe muwallad, que quer dizer mestiço de árabe com não árabe). Seja como for, a mulher negra tem sido, até agora, continuamente exposta como símbolo de sensualidade. Uma forma pouco sutil de racismo é considerar que negros — homens e mulheres — são máquinas sexuais. Um homem se aproxima de uma negra e diz: “Você deve ser um furacão na cama”. Pior, se não diz, pensa. Assim como há quem creia que homens negros têm um órgão maior. A erotização coloca a pessoa negra unicamente como objeto de desejo. “Seu namorado é branco? Sorte dele” — já se ouviu dizer. E o que pensar de “mercado negro” — que se refere ao mercado paralelo, ilegal? Tem também a “inveja branca”, que é supostamente a inveja do bem. Ah, façam o favor!
Eu mesmo me surpreendo dizendo coisas que não quero, por força do hábito. Estamos longe do tempo em que se dizia “preto de alma branca”. Ainda se ouve “amanhã é dia de branco”, “a coisa tá preta”. Por que uma situação pior, a “coisa”, seria “preta”? Ou um trabalho malfeito, “serviço de negro”? Há expressões racistas disfarçadas de elogios, como: “Você tem uma beleza exótica”. Alguém diz que a Gisele Bündchen é exótica? Não, porque é branca. Mais horrorosa ainda: “Você é uma negra bonita, de traços finos”. Temos uma música, Nega do Cabelo Duro, cujo refrão diz: “Qual é o pente que te penteia / qual é o pente que te penteia”.
“Continuamos a usar termos impróprios. A linguagem forma as pessoas, molda o modo de pensar. É preciso reaprender a falar”
Quando eu era criança, minha mãe tinha uma funcionária que odiava quando diziam que ela era negra. Só se podia dizer que era “de cor”. Nos anúncios de emprego, pedia-se “boa aparência”. Uma forma de dizer que negros não seriam aceitos. Ainda bem que os negros aprenderam a se orgulhar de ser negros. Mas há quem diga: “Tem um pé na cozinha”. Segundo essa expressão, negros deveriam estar confinados à cozinha! Meus avós são imigrantes espanhóis, brancos. Vou a restaurantes e raramente vejo negros sentados às mesas. Prova ocular de que esta sociedade não é inclusiva, mas, sim, racista. Se quiser, uma pessoa pode esconder a condição social, a vida sexual. Mas não a cor da pele. É obrigada a conviver com o racismo. Um amigo negro comentou: “Você não tem ideia do que a gente passa desde criança”.
Continuamos a usar termos racistas. A linguagem forma as pessoas, molda o modo de pensar. Não aceito mais essas palavras e expressões, policio meu vocabulário. É preciso reaprender a falar.
Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645