Mais de duas semanas antes de a Globo ser criticada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) por causa da abordagem da novela O Outro Lado do Paraíso dos temas abuso sexual e saúde mental, a Sociedade Latino Americana de Coaching (Slac) já havia alertado a emissora sobre a maneira como o folhetim de Walcyr Carrasco tratava a questão. Um ofício enviado por Sulivan França, presidente da Slac, em 18 de janeiro, aponta que a novela deu “informações equivocadas sobre o coaching, seu real significado e aplicação”.
Na trama, a advogada Adriana (Julia Dalavia) é coach e afirma que faz hipnose. Adriana vai atender Laura (Bella Piero), uma garota que dá sinais de trauma psicológico relacionado a sexo e já pediu divórcio do marido, com quem acabou de se casar, por não saber lidar com a dor que o ato sexual inflige a ela. Nas sessões com a advogada, a garota vai se lembrar de ter sido abusada pelo padrasto, o delegado corrupto Vinicius (Flavio Tolezani).
A carta foi enviada pela Slac à Globo no dia seguinte da exibição de um capítulo em que Adriana conta ter feito um “curso de coach” e diz ser “um método onde se estabelece uma relação com o cliente em função de um objetivo”. “Existem algumas técnicas para descobrir dados, motivações. Tudo em função de uma cura interna. A gente usa, inclusive, a hipnose”, diz a personagem.
O ofício afirma que o maior erro é atribuir a coaches o uso da hipnose. “Coaching é um processo de planejamento estratégico do indivíduo para que ele possa sair de onde está no presente e chegar aos objetivos que quer alcançar no futuro, sem falar, em momento algum, de passado ou utilizar qualquer técnica como a hipnose. Em nenhum momento está ligado ao passado”, diz a carta.
Em seguida, a Slac alerta que a associação estabelecida pelo folhetim pode levar profissionais a atuar de maneira equivocada com psicologia. “Além de ilegal, isso se tornaria um problema de saúde pública, o que é extremamente preocupante”, diz a mensagem.
Nesta segunda-feira, o Conselho Federal de Psicologia divulgou uma nota criticando a Globo. “O Conselho Federal de Psicologia entende que a telenovela, por se tratar de uma obra capaz de formar opinião, presta um desserviço à população brasileira ao tratar com simplismo e interesses mercadológicos um tema tão grave como o sofrimento psíquico de personagem cuja origem é o abuso sexual sofrido na infância”, diz o texto. “É consenso no Brasil que pessoas com sofrimento mental, emocional e existencial intenso devem procurar atendimento psicológico com profissionais da Psicologia, pois são os que têm a habilitação adequada.”
Uma cena exibida na novela na sexta-feira passada, quando Adriana explica a Clara (Bianca Bin), que é coach e que faz hipnose, foi uma ação de merchandising do Instituto Brasileiro de Coaching (IBC). Procurado por VEJA nesta terça, o instituto afirmou que coaches não fazem uso da hipnose.
Uma resolução do Conselho Federal de Psicologia restringe a psicólogos capacitados a prática da hipnose: “Art. 2º – O psicólogo poderá recorrer a Hipnose, dentro do seu campo de atuação, desde que possa comprovar capacitação adequada, de acordo com o disposto na alínea ‘a’ do artigo 1º do Código de Ética Profissional do Psicólogo”.
Confira a carta enviada pela Slac à Globo em 18 de janeiro:
“Prezada Cintia,
Gostaríamos de pedir a atenção em relação a um tema colocado de forma equivocada durante uma cena do capítulo da novela O Outro Lado do Paraíso, exibido na última quarta-feira (17). Na cena, a personagem Adriana (Julia Dalavia) explica técnicas que poderia utilizar para descobrir mais informações sobre a personagem Duda (Glória Pires).
Na conversa, a personagem afirma ter feito “curso de coach” e diz ser “um método onde se estabelece uma relação com o cliente em função de um objetivo. Existem algumas técnicas para descobrir dados, motivações. Tudo em função de uma cura interna. A gente usa, inclusive, a hipnose”.
Ainda que a novela seja uma obra de ficção, esse texto da personagem traz informações equivocadas sobre o coaching, seu real significado e aplicação.
Ao falar que a personagem Adriana fez “curso de coach” já aparece o primeiro erro. Coach é o profissional que aplica o coaching e não a metodologia em si. No entanto, o principal problema está na afirmação de que o processo pode utilizar a hipnose. O maior desafio que temos hoje é justamente mostrar as diferenças para as pessoas entre coaching, psicologia, terapia, consultoria, programação neurolinguística e hipnose. Coaching é um processo de planejamento estratégico do indivíduo para que ele possa sair de onde está no presente e chegar aos objetivos que quer alcançar no futuro, sem falar, em momento algum, de passado ou utilizar qualquer técnica como a hipnose. Em nenhum momento está ligado ao passado. Trata-se de uma metodologia que trabalha o desenvolvimento pessoal e profissional de cada indivíduo.
Tratar o coaching dessa maneira e associar a atividade à hipnose pode, em nossa opinião, induzir profissionais da área a atuar de maneira equivocada com psicologia. Além de ilegal, isso se tornaria um problema de saúde pública, o que é extremamente preocupante.
Em outro momento do diálogo, a personagem ainda garante que “poderia descobrir tudo sobre essa mulher”, outro erro perigoso. O coach é retratado como um manipulador, o que definitivamente não pode ser associado a esse profissional. O foco do coaching é fazer com o que o indivíduo amplie seu autoconhecimento e encontre em si mesmo as respostas que precisa para melhorar e desenvolver habilidades, sempre olhando para o presente e para o futuro.
Em um mercado onde existem tantos pseudos profissionais e institutos, é delicado colocar em uma novela de amplitude nacional informações sem fundamento que deturpam o real significado do coaching. Imaginamos que o assunto ainda voltará nos próximos capítulos. E justamente por isso acreditamos ser importante esclarecer ao público esses pontos.
Seguimos à disposição caso necessitem de um auxílio mais aprofundado para transmitir essas ideias à audiência de maneira mais clara e efetiva. Como uma organização de coaching séria, há mais de 15 anos no mercado, nosso único interesse é informar didaticamente o papel de um profissional da área e a metodologia.
Atenciosamente,
Sulivan França(*)
Presidente da SLAC – Sociedade Latino Americana de Coaching
* Master Coach Trainer por meio da International Association of Coaching Institutes, possui licenciamento individual conferido pelo Behavioral Coaching Institute (BCI) e credenciamento individual junto a International Association of Coaching (IAC), além de Master Trainer por meio da International Association of NLP Institutes.”