Carlos (o fenomenal Lorenzo Ferro) tem 17 anos e um grande sortimento de ideias próprias, que em nada coincidem com aquilo que lhe foi ensinado em casa: filho único e temporão de um casal escrupulosamente honesto da classe média de Buenos Aires, ele “não acredita” em propriedade privada, conforme diz — e faz questão de mostrar — ao espectador. Na saída da escola, diverte-se entrando em casas alheias e servindo-se de tudo o que lhe agrada — uísque, roupas, joias, carros, motocicletas. Carlos não vende o produto dos furtos; larga os veículos em uma rua qualquer, com a chave na ignição, depois de rodar pela cidade com eles. Presenteia a mãe (Cecilia Roth) e a namorada com as joias; veste as roupas até enjoar delas. Para cada item, arranja uma desculpa esfarrapada — um amigo lhe deu ou emprestou — em que a mãe e o pai (Luis Gnecco) fingem para si mesmos acreditar, porque seu menino de cachos loiros e lábios de framboesa é amado, festejado e mimado, e sabe retribuir o carinho deles com uma doçura cativante. Um dos grandes temas do cinema argentino, porém, são os eventos e seus agentes catalisadores. E, em O Anjo (El Ángel, Argentina/Espanha, 2018), já em cartaz no país, o mau comportamento de Carlos se acelera em perversão, profunda e terrível, assim que o menino trava amizade com Ramón (Chino Darín, filho de Ricardo Darín), um rapaz um pouco mais velho que — esse, sim — aprendeu em casa tudo o que sabe.
No papel dos pais de Ramón, Daniel Fanego e Mercedes Morán mostram-se verdadeiramente faustianos: devassos e amorais, instigam nos garotos os piores instintos e aproveitam-se deles. Mas o novo discípulo é muito superior aos mestres — que pagaram caro por se terem metido com Carlos Robledo Puch, uma das figuras mais notórias, e mais assustadoras, da crônica policial argentina. Em 1972, aos 20 anos de idade, ele já fizera muito por merecer os apelidos de “O Anjo da Morte” e “O Anjo Negro”. O jovem Lorenzo Ferro encarna seu personagem com um comprometimento vertiginoso: displicente na violência, fluido na sexualidade e sociável na convivência, Carlos é indefinível. Também o diretor Luis Ortega, da minissérie História de um Clã, sobre outro caso estarrecedor, o da família Puccio, dá aqui um salto substantivo: filma em um estilo voluptuoso e de cores vivas; a trilha sonora, feita só de versões vintage argentinas de sucessos estrangeiros, dá o tom de deboche. Sem nunca citar diretamente o que se passava no país — a desintegração política e ética que conduziria a uma violenta ditadura militar —, Ortega retrata esse anjo caído, assim, como mais uma confluência tenebrosa entre a inclinação pessoal de um indivíduo e a depravação do momento histórico que ele habita. E, de novo, atinge aquela contundência com que o cinema dos vizinhos nem sonha.
Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631
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