Gerações de brasileiros conviveram, uma vez por semana, com o humor caricatural e sem filtros produzido por Os Trapalhões, um dos maiores fenômenos da TV nacional. Eram outros tempos, e Didi (Renato Aragão), Dedé (Manfried Sant’Anna), Mussum (Antônio Carlos Gomes) e Zacarias (Mauro Faccio) despejavam piadas inconvenientes sobre mulheres, homossexuais, negros, nordestinos e pobres em geral em pleno horário nobre, sem que ninguém reclamasse. Pelo contrário, faziam tremendo sucesso, e assim continuaram ao longo de trinta anos — um recorde mundial de permanência de programa humorístico no ar, devidamente registrado no Guinness. Muito já se escreveu sobre a trajetória dos quatro, mas nem tudo foi contado. Uma série-documentário em fase de montagem, à qual VEJA teve acesso exclusivo, trata justamente dos ângulos não revelados da longa convivência dos palhaços que a audiência amou e aplaudiu durante décadas. Os bastidores abertos ao longo dos 62 depoimentos colhidos para a realização de Trapalhadas sem Fim, do diretor Rafael Spaca, expõem uma relação conturbada, com boa dose de ressentimento e divergências artísticas, de um lado, e de arrogância e autoritarismo, de outro, entre os três coadjuvantes — Dedé, Mussum e Zacarias — e Renato Aragão, o cabeça inconteste e o único multimilionário do grupo.
O primeiro racha dos Trapalhões aconteceu em agosto de 1983 e todo mundo ficou sabendo — a Globo passou seis meses exibindo reprises, enquanto se tentava pacificar os ânimos. O motivo era um mistério. Não mais. Testemunhas do desentendimento contam que o estopim da briga foi uma reportagem de capa de VEJA, “O Grande Palhaço — Por que Renato Aragão Faz Rir”, que evidenciava a condição de estrela maior de Didi, o que provocou ciumeira nos outros, e escancarava sua fortuna — esse, o empurrão fatal para a rebelião. Tamanha foi a raiva que Dedé, Mussum e Zacarias anunciaram o rompimento em uma entrevista coletiva, com Didi junto, sem saber de nada e pego de surpresa. Seguiu-se um período tumultuado, com cada lado fazendo trabalhos próprios (e fracassados) e Aragão estrilando com os “traidores” que o trocavam pelo trio de desafetos. Victor Lustosa, diretor assistente dos filmes dos Trapalhões até o fatídico 1983, conta a reação furiosa de Renato Aragão ao ouvir que estava de partida para a produtora rival. “Ele me falou: ‘você vai morrer de fome e não venha bater na minha porta depois’.” Mais cruel ainda foi a forma como dispensou sumariamente os três ex-colegas, ainda segundo Lustosa: “Não preciso deles. Posso fazer a mesma coisa tendo um cachorro, um macaco e um veado”. Não foi a primeira, nem a última, ofensa pessoal de Didi a Dedé, Mussum e Zacarias.
A reconciliação também é narrada pela primeira vez em detalhes: foi obra do empresário Beto Carrero, então sócio de Aragão, que os convidou para um encontro, sem que um soubesse da presença do outro. Para a surpresa dos presentes, os quatro se cumprimentaram cordialmente, o almoço no restaurante do Hotel Méridien, no Leme, Zona Sul do Rio de Janeiro, prolongou-se até o jantar e o grupo saiu de lá com as pazes feitas. Houve conversas emocionadas, troca de reminiscências e um novo acordo financeiro. Mussum puxou a reivindicação de aumento da participação dos três nos lucros. Aragão ofereceu, da parte do leão que lhe tocava, mais 1 ponto porcentual para cada um. Oferta aceita, decidiram retomar as gravações no dia seguinte. Estava salva a pátria trapalhona. Dedé também pediu e conseguiu a direção de quatro filmes do grupo. “Descobri uma paixão”, disse a VEJA. Ao longo do documentário, e nas conversas da reportagem com os entrevistados, fica patente a admiração de todos pela capacidade, organização e talento artístico de Renato Aragão. Não há, da parte deles, estranheza alguma pelo fato de Didi ser o trapalhão mais famoso e o mais rico. Mas, aqui e ali, pipocam críticas ao seu estilo de trabalho.
Por exemplo: contam que ele roubava as melhores piadas para si. Ferrugem, ator mirim no auge dos Trapalhões e que contracenou com eles na televisão e nos filmes, relata que certa vez perguntou a Wilson Vaz, redator do programa, por que estava aparecendo pouco. “Ele me mostrou uma pilha de páginas de texto que havia escrito para mim, mas o Renato não deixou que me passasse”, relembra. José Lavigne, que dirigiu Os Trapalhões por alguns meses, confirma ser constante a intervenção de Didi na divisão das piadas. “Mas dono de programa não rouba, ele pega”, filosofa, pragmático. Várias pessoas da equipe mencionam ainda os comentários e as atitudes racistas a que Mussum era submetido. “Ele deixava bananas na cadeira dele”, conta a camareira Sirene Oliveira. “Meu pai não gostava disso de jeito nenhum”, disse a VEJA o filho do humorista, Sandro Gomes. Se a brincadeira de mau gosto acontecia fora do palco, Mussum mostrava sua irritação. No contexto do programa, ele revidava com saraivadas de piadas sobre nordestinos, em geral, e cearenses, em particular (Aragão nasceu em Sobral). Outros tempos, definitivamente.
Renato Aragão sempre foi o único a participar ativamente das reuniões de roteiro. Também atuava como produtor em todas as criações do grupo. “Não seríamos nada sem o Renato. Ele era o cérebro e eu, apenas um trabalhador braçal”, disse Dedé a VEJA. “Renato Aragão entendeu muito bem essa veia de humor popular brasileiro. Era o pau de arara ferrado, que sabe se virar e que sempre se dá bem no final”, afirma o consagrado cineasta Silvio Tendler, contratado pela Renato Aragão Produções para dirigir o documentário O Mundo Mágico dos Trapalhões, de 1981 (e lhe conferir algum verniz intelectual). “Eu tentei fazer um filme sobre o trabalho deles, mas o Renato queria uma antologia, uma peça de humor popular”, lembra Tendler sobre a obra que se tornaria o documentário brasileiro mais visto de todos os tempos, com 1,8 milhão de espectadores. Outra amostra de que quem manda pode: na fita, ele aparece sozinho em 29 dos noventa minutos. Os filmes dos Trapalhões foram arrasa-quarteirão: até hoje, são deles seis das vinte maiores bilheterias de todos os tempos. A popularidade do grupo se estendeu à audiência (no Rio, o programa chegou a ter mais ibope do que o quase imbatível Jornal Nacional), aos quadrinhos (3,1 milhões de exemplares, pareando com a Turma da Mônica) e à música — o disco Saltimbancos Trapalhões vendeu 100 000 cópias, feito extraordinário para a época.
Uma voz inédita entre os entrevistados é Selma Lopes, ex-mulher de Mauro Faccio, o Zacarias, que nunca havia falado em público. Aos 91 anos, ela nega categoricamente os relatos de que o humorista, um gay não assumido que teve vários namorados, tenha morrido de pneumonia decorrente de aids. “A certidão de óbito está comigo e a causa da morte não tem nada a ver com o vírus”, declara. Dubladora, Selma diz que os dois tiveram um ótimo casamento de oito anos e considera que o que ele fez depois que se separaram não é da sua conta. “Enquanto estava comigo, funcionou muitíssimo bem”, garante. Zacarias morreu em 1990, aos 56 anos, e o programa continuou a ser tocado pelos outros três, mas já sem a mesma audiência cativa. Lavigne, convocado para resolver o problema, incluiu um segundo bloco em que Didi aparecia sozinho. Didi espalhou para todo mundo que era uma decisão do diretor. Não era, desmente agora Lavigne — a ordem partiu de Aragão. “O programa não era meu, era dele”, argumenta, sempre pragmático.
O novo formato com três humoristas não durou muito. Durante a Copa do Mundo de 1994, Mussum morreu, aos 53 anos, por complicações decorrentes de um transplante de coração. Decretou-se então o fim de Os Trapalhões, no ar (com este nome) desde 1976. A história não acaba aí. Passado um tempo, a Globo recontratou Aragão para um programa-solo e Dedé foi para o SBT fazer o mesmo — conquistando mais audiência do que o antigo chefe. Reconciliaram-se em um lacrimoso encontro no Criança Esperança de 2004 e, quatro anos depois, estrearam em dupla um programa global, Turma do Didi (claro), encerrado definitivamente em 2010.
Angélica, Tony Ramos, Regina Duarte e vários outros artistas que trabalharam com os Trapalhões aparecem no documentário, sempre cheios de elogios para o quarteto. Mas nenhum dos dois integrantes vivos quis aparecer. Renato Aragão alegou que está produzindo o próprio documentário. VEJA o procurou para comentar as acusações de que é alvo, mas ele não quis se pronunciar. Dedé Sant’Anna, que chegou a assinar uma carta apoiando a obra de Spaca, também preferiu não gravar. A VEJA, informou que também está trabalhando no tal documentário de Aragão. “Não tenho raiva de ninguém, mas não vou colocar azeitona na empada dos outros”, justificou. Aos 83 anos, Dedé passou por sérios problemas financeiros e recebe ajuda do velho companheiro Didi, de 84 anos. De certa forma, e apesar de tudo, esses dois trapalhões continuam juntos.
Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651