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Os tesouros do arquivo do Canal 100 correm risco no caos da Cinemateca

Trata-se de uma joia da cinematografia e do esporte brasileiros

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h08 - Publicado em 26 jun 2020, 06h00
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  • Que Fellini, que nada. Pasolini, Truffaut, Godard? Não. E aquele novo filme do diretor americano que pôs um tubarão para assustar as pessoas na praia? Também não. Para uma geração de brasileiros, sobretudo do Rio e de São Paulo, que frequentava cinemas como o Bruni Tijuca e o Bruni Copacabana, o Ipiranga ou o Majestic, em um arco de tempo que vai de 1958 a 1986, a graça mesmo era saber o que estava levando o Canal 100, chegar mais cedo e… pã, pã, pã, pã, pã, pã. Aos acordes iniciais dos naipes de saxofones e trompetes de Na Cadência do Samba, que bonito era ouvir a trilha de abertura do cinejornal com as bolinhas coloridas, efeito visual obtido a partir da filmagem dos faróis de carros, e então a delícia de ver de perto — bem de perto, na altura do gramado, olhos nos olhos — os torcedores da geral com radinho na orelha, os lances espetaculares de Pelé, Garrincha, Zico, Roberto Dinamite, Rivellino e um cipoal de craques que pareciam artistas de Hollywood, conduzidos pelo vozeirão de Cid Moreira. Escolhiam-se as salas, enfim, em virtude daqueles cinco minutos mágicos.

    O Canal 100, mesmo para quem não é fã de futebol, faz parte da memória coletiva de um país que, segundo a máxima do escritor Ivan Lessa, de “quinze em quinze anos esquece o que se passou nos últimos quinze anos”. É risco permanente, agora multiplicado. Um lote de 10 000 latas de filmes em película do cinejornal, guardadas nos depósitos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, corre risco de danificação — e, não menos grave, mal pode ser usado, com receio de processo judiciário. Os rolos estão enrolados na crise sem fim da instituição, que deve mais de 11 milhões de reais. Há duas semanas a empresa de refrigeração, fundamental para a manutenção dos arquivos, jogou a toalha e cortou o serviço por não receber o que lhe devem. E mais: numa queda de braço que vem desde o início dos anos 2000, não se sabe quem deve zelar pelo acervo. O Ministério da Cultura? O do Turismo? Em 2008, a família Niemeyer, dos criadores do Canal 100, fechou uma parceria com a Cinemateca para a guarda do tesouro, que poderia ser usado em documentários e programas de televisão. Ia bem, havia futuro, até que o vaivém da política brasileira pôs tudo a perder. Recentemente, o TCU começou a investigar a barafunda da Cinemateca, e os donos do material acabaram ficando de mãos amarradas. “Tenho receio em usar os filmes e depois não conseguir concluir os projetos”, disse a VEJA Alexandre Niemeyer, filho do criador, Carlinhos Niemeyer (1920-1999), fiel depositário da coleção. “No início, a ideia era digitalizar tudo, o que já é praticamente impossível. A Cinemateca não tem dinheiro nem mais a tecnologia adequada de preservação.” E, mal acondicionadas, as embalagens caminham para o bolor.

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    MÁ CONSERVAÇÃO - Niemeyer (1920-1999), o criador: 10 000 latas em perigo (PAULO GARCEZ/.)

    Há um movimento da classe cinematográfica de transferência do controle da Cinemateca para o governo do Estado de São Paulo (para a União, trata-se apenas de uma sinecura para a ex-ministra e ex-namoradinha do Brasil, Regina Duarte). “Seria uma solução razoável”, diz Niemeyer. É um modo de não deixar morrer uma joia que, no início dos anos 2000, quase foi comprada pelo Instituto Moreira Salles por 3 milhões de dólares, segundo VEJA apurou.

    E, ressalve-se, não é só futebol. Houve, no Brasil, no início dos anos 1960, o Cinema Novo de Glauber Rocha, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e cia., que, entre outros méritos, levou para as telas a chamada “estética da fome”. Mas houve também o jeito de gravar do Canal 100, com câmeras alemãs Arri 2c, cujas primeiras versões foram lançadas durante a II Guerra. Na linha dos pés dos jogadores, em 60 quadros por segundo — e não na velocidade normal, de 24 quadros por segundo —, a sensação era indizível. “Era maior do que a vida”, resume o diretor de fotografia Jacob Solitrenick, que fez parte da equipe que trabalhou no filme oficial da Copa de 1994, Todos os Corações do Mundo, de tomadas que bebiam do Canal 100. “Nunca tínhamos visto o futebol daquele ângulo, tão eloquente.” Ou, como anotou Walter Carvalho, fotógrafo de Lavoura Arcaica e Carandiru, ao se referir a um dos cinegrafistas da clássica série esportiva, Francisco Torturra: “Ele posicionava sua câmera ao nível da grama e dominava o percurso da bola com a destreza de seu olho e os reflexos de seus músculos. Como Garrincha, levava a bola até o gol”. É seiva que não pode sumir no irresponsável caos da Cinemateca.

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    Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693

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