Mia Couto e a inspiração para escrever na pandemia: ‘Desafio’
A VEJA, autor moçambicano fala sobre a participação no ‘Projeto Decameração’, livro que reúne contos de escritores pelo mundo sobre a atual crise de saúde
Um homem idoso vivendo em uma região remota recebe, de repente, uma pessoa estranha em sua casa. Ele logo pensa que está sendo assaltado quando o visitante lhe aponta uma arma de cor branca na testa, porém, nenhum disparo acontece. O tal assaltante faz perguntas estranhas e diz ser um agente de saúde. O idoso desconfia, mas gosta da companhia. Assim começa o conto Um Gentil Ladrão, do moçambicano Mia Couto. O texto integra a coletânea Projeto Decamerão, organizado pelo jornal americano The New York Times, lançado recentemente no Brasil. A VEJA, o autor, que também é biólogo, fala sobre os tempos pandêmicos e a criatividade para escrever neste período.
Como surgiu a inspiração para o conto Um Gentil Ladrão? Moçambique é um país com uma variedade enorme de culturas, de línguas e de pessoas com diferentes condições de acesso à informação. Grande parte dos moçambicanos vive em zonas remotas onde são poucos os que falam português. Foi neste cenário de contrastes e desencontros que nasceu a ideia deste conto. Não era difícil imaginar situações de equívocos entre quem levava a notícia da pandemia e os destinatários dessas mensagens. Esses mal-entendidos não são apenas de natureza linguística. O que está em confronto são modos profundamente diversos de entender o mundo.
Como tem passado por essa pandemia? Em relação à Covid-19, Moçambique tem sido poupado, felizmente. Tivemos poucos casos desde o início da pandemia, no ano passado: 800 óbitos para uma população de 30 milhões de habitantes. No mês de fevereiro deste ano houve um surto mais grave na cidade de Maputo, onde eu vivo. Perdi vários amigos e colegas num espaço de duas semanas. Nunca houve, no entanto, a necessidade de adotar um lockdown. Há restrições que permitem uma certa sociabilidade. Temos, felizmente, um governo cuja atuação, neste domínio, se guia por fundamentos científicos. Mas temos outras desgraças como uma guerra provocada por extremistas que se apresentam como jihadistas. E isso é um pesadelo que nos rouba a respiração.
Além do conto, o que tem escrito? Esse período aumentou sua vontade de escrever ou de alguma forma minou sua criatividade? Creio que a criatividade nestes tempos funciona de duas maneiras: sou confrontado de modo positivo com o desafio de me superar, de vencer as fronteiras do confinamento, de partir em busca de outro alento. Nesses momentos, eu saio de mim para vencer a carência do abraço, da proximidade do outro e, sobretudo, para não perder o sentido da esperança. Mas, há momentos, confesso, de profunda melancolia em que me cansam as paredes e me dá vontade de sacudir o chão e o teto.
Como relaciona o clássico Decamerão com a pandemia dos dias de hoje? É curioso pensar que o livro de Boccaccio, escrito durante a Peste Negra, evoca um cenário que agora nos é familiar: um grupo de jovens confinado num castelo no meio do campo, para escapar ao contágio da peste. E é curioso pensar que o Decamerão sugere rupturas não apenas no tipo da narrativa dominante, mas nos valores morais da época. A verdade é que a peste bubônica demorou quase uma década e matou um quarto da população da Europa. A ideia de fim de mundo foi vivida de forma intensa e generalizada pelos europeus. Mas esse sentimento de fim de mundo já foi sentido por todos os povos e o Brasil sabe bem disso por via do extermínio dos povos indígenas e pelos sobreviventes da escravatura.
Qual outro livro sobre pestes acha apropriado para esse período que passamos? Eu reli A Peste de Albert Camus e confesso que desisti no meio. Senti que precisava sair para um universo mais luminoso. Sou biólogo e estou muito interessado em saber mais sobre o mundo invisível dos vírus e da bactérias. Não creio que seja um assunto que interessa apenas os biólogos. Acho que temos todos uma visão muito estreita da vida.
Como assim? Esquecemos quase sempre dos grandes arquitetos e os maestros deste milagre que vivermos num planeta vivo. Esses que chamamos de microrganismos. Uma parte dos nossos medos mais antigos e profundos nascem da ideia de uma essência pura do que é humano e da desconfiança que mantemos para com o que nos parece ser estranho e distante. Temos que aprender a lidar com essas invisíveis criaturas que não apenas nos habitam, mas que são parte integrantes de nós. É preciso perder a arrogância que, mesmo no discurso ambientalista, no coloca na posição messiânica de “salvadores da natureza”. No fundo, a nossa espécie, mesmo antes desta pandemia, já há muito que vivia num confinamento conceptual, numa espécie de apartheid existencial.