Manuscritos caóticos de Dickens são decifrados com ajuda de amadores
Técnico de TI e entusiasta por códigos ganharam 300 libras ao transcrever carta do autor - projeto ainda prevê a leitura do que pode ser um conto inédito

Charles Dickens (1812-1870) deixou para trás obras incontornáveis, como Oliver Twist, David Copperfield e Um Canto de Natal. Mas o romancista inglês também despertou a curiosidade de especialistas quanto a seus manuscritos — uma mistura de abreviações arcaicas, manchas e rabiscos, que o próprio apelidou de “caligrafia do diabo”. A confusão que perdurou mais de um século resultou em um concurso de decifração que, com a ajuda de fãs e amadores, permitiu observar novas informações sobre a vida amorosa e a situação de risco financeiro enfrentada por Dickens.
Lançado em outubro do ano passado por especialistas envolvidos no projeto nomeado “Dickens Code” (Código Dickens, em português), o concurso tinha por objetivo desvendar uma carta misteriosa do autor guardada em uma biblioteca de Nova York. O prêmio seria de 300 libras, e mais de 1.000 detetives amadores se inscreveram na empreitada. A recomendação era de que usassem guias de braquigrafia, um sistema de taquigrafia — método abreviado ou simbólico de escrita, para aumentar sua velocidade — hoje obsoleto, adaptado por Dickens. Um caderno em que o próprio autor explicava alguns de seus símbolos também foi disponibilizado.
Apenas 16 pessoas apresentaram transcrições significativas da carta, nenhuma delas completa. O prêmio foi para Shane Baggs, um trabalhador de TI da Califórnia e entusiasta de códigos, que conseguiu resolver o maior número de símbolos. “Depois de obter majoritariamente notas C em literatura, nunca sonhei que algo que eu faria seria de interesse para os estudiosos de Dickens”, disse o ganhador ao The Guardian. Ken Cox, um estudante de ciências cognitivas de 20 anos, que vive em Ohio, também contribuiu para quebrar o código a partir de experiências da infância, quando escrevia cartas codificadas inspiradas em um livro sobre o matemático e criptoanalista britânico Alan Turing.
O conteúdo da carta — agora 70% decifrada —, ao contrário do que esperariam os fãs, não diz respeito a partes de algum conto perdido de Dickens, mas revela informações preciosas sobre um momento difícil de sua vida pessoal. Por volta de 1859, com um casamento recém acabado em meio a rumores de traição, dez filhos para sustentar e problemas financeiros, Dickens tentou comprar a Household Words, um periódico editado por ele em co-propriedade com a editora Bradbury e Evans, que era uma vitrine para seu trabalho, além de fonte vital de renda. Entre a tentativa frustrada de compra e a fundação de um periódico próprio, o que a carta revela, afinal, é Dickens buscando ajuda com suas conexões e com os tribunais.
Financiado pelo Conselho de Pesquisa em Artes e Humanidades do governo britânico, o projeto “Dickens Code” ficará ativo por mais um ano, na tentativa de transcrever mais manuscritos confusos. Dentre eles, uma série de anotações chamada “Anedota”, que os especialistas esperam conter uma história inédita do autor.