O americano James Safechuck e o australiano Wade Robson sentiram-se privilegiados ao cair nas graças de Michael Jackson, no fim da década de 80. Safechuck, então aos 8 anos, participou de um comercial de refrigerante estrelado pelo pop star. Revelado em um concurso de dança, Robson, de apenas 5 anos, obteve a honra de aparecer ao lado de Michael na turnê do disco Bad. A princípio, os relatos dessas amizades são ingênuos, e ressaltam a inocência do ídolo (“um menino de 9 anos” é como uma maquiadora define Michael para a mãe de Safechuck). Mas, após os trinta minutos iniciais de Deixando Neverland (Leaving Neverland, Inglaterra, 2019), a figura sorridente de Michael vai se tingindo de tons sorumbáticos, enquanto a trilha rósea cede lugar a temas musicais de andamento soturno. “Naquela noite, ele me masturbou pela primeira vez”, diz Robson, demarcando a virada. O documentário, de quatro horas — que será lançado no país em duas partes, nas noites de sábado 16 e domingo 17, pela HBO (e no serviço HBO Go) —, promove uma estarrecedora operação de desmonte da imagem do artista. Sai o cordeiro que entoava We Are the World para ajudar as criancinhas famélicas da África. Entra na sala um monstro pedófilo calculista.
Os depoimentos de Safechuck e Robson não são somente um soco no fígado dos admiradores mais crédulos de Michael. Deixando Neverland tira o sono mesmo dos céticos que sempre viram sinal de fogo na vasta barragem de fumaça das recorrentes acusações de abuso sexual de crianças que acompanharam o cantor até sua morte, por overdose de anestésico hospitalar, em 2009, aos 50 anos. Em resumo: aquilo de que muitos desconfiavam, mas nunca se comprovara em evidências cabais, é desvelado com riqueza assombrosa de detalhes pela primeira vez. O estrago foi imediato. Rádios de vários países anunciaram que vão banir canções de Michael Jackson. Os criadores de Os Simpsons tiraram de circulação um velho episódio com o cantor — pois agora acham que Michael usou o desenho como isca para atrair crianças. Músicas como Ben, que fala supostamente de um ratinho e era cantada no episódio em questão, realmente adquirem sentido capcioso: “Nós dois não precisamos mais procurar / Ambos achamos o que procurávamos / Com um amigo para chamar de meu / Nunca estarei só”.
Michael veio engrossar a lista de artistas cuja obra foi posta na berlinda por revelações de conduta condenável. Nesses processos de revisionismo tipicamente contemporâneos, há exageros ao gosto de certa patrulha dita “progressista” mas na verdade puritana: as feministas podem e devem desancar, com razão, a cafajestice torpe de um pintor como Picasso — no entanto, daí a jogar na lama criações fundamentais como seus retratos cruéis da amante Dora Maar é de uma estultice pueril. Em outros casos, estender o castigo à obra é compreensível. Boicotar Kevin Spacey ou o cantor R. Kelly — envolvidos em carradas de denúncias de assédio sexual — é quase obrigatório para os colegas artistas, pois seria indefensável manter parcerias com figuras tão reprováveis. Evitar seu trabalho é também uma forma de punir financeiramente os abusadores.
O caso de Michael é mais complicado. Abusar de crianças é crime gravíssimo, mas faz sentido usar isso como justificativa para banir clássicos que definem uma geração, como Thriller ou Billie Jean — ainda mais se seu autor morreu há quase dez anos? Faz sentido, de outro lado, continuar ouvindo Michael Jackson apesar da descoberta de que ele usava a fama como trunfo para cometer mais atos pedófilos?
Ainda que não apresentem provas materiais, os dois personagens de Deixando Neverland narram — ao lado das mães, irmãos e outros parentes — suas histórias com a naturalidade convincente de quem expia fantasmas reais há muito guardados. Nas versões deles, Michael se exibe como um predador sexual que — vítima ou não de tormentos psíquicos — age com método e frieza. Ele atrai as mães para sua proximidade, conquistando um lugar no coração das famílias, mas aos poucos vai separando-as de Safechuck e Robson, com os quais passa a dividir sua cama. Compra os meninos com brinquedos e joias, e os submete a uma rotina de abusos que inclui masturbação, sexo oral, beijos em diversas partes do corpo e ao menos uma tentativa frustrada de penetração. A família de Michael refutou tudo, lembrando que os dois protagonistas abriram processos póstumos pedindo uma grana gorda — e tiveram os pleitos negados pela Justiça americana. Os Jackson anunciaram, ainda, um processo de 100 milhões de dólares contra a HBO.
As acusações de pedofilia perseguiram Michael desde 1993, quando o pai de outro garoto, Jordan Chandler, acusou o pop star de ter molestado o filho de 13 anos. Michael passou por uma constrangedora revista da polícia, que tirou fotos de várias nuances de seu corpo (Chandler havia declarado que o pênis de Michael era manchado), e gravou um vídeo jurando inocência. Para encerrar o caso, o cantor pagou um cala-boca de 23 milhões de dólares aos acusadores. Dez anos depois, em junho de 2003, Gavin Arvizo, também de 13 anos, acusou Michael novamente de abuso. O cantor foi preso cinco meses mais tarde, mas acabou absolvido em 2005.
Nem aquele julgamento, extensamente noticiado, foi capaz de produzir o impacto do novo documentário. Não é só que Michael fosse um abusador, sustenta o programa: ele o fazia com dissimulação e ciente de como se servir da fama para seus crimes seriais. Com lábia e ameaças, forçava as vítimas a manter segredo: os adultos (especialmente as mulheres) seriam pessoas más que jamais entenderiam os atos praticados entre eles. Asseverava-lhes que tanto ele quanto os garotos passariam a vida na prisão se alguém descobrisse. Michael instigava a rivalidade entre os meninos para controlá-los. Ao mesmo tempo, fazia com que se sentissem especiais. Num dos momentos mais perturbadores, Safechuck exibe joias que diz ter ganhado de Michael, como uma aliança de casamento — celebrado na cama do pop star. A câmera dá então um close em sua mão trêmula.
Embora Michael Jackson seja o gancho obrigatório, a sacada do diretor é não se deixar desviar pelas conhecidas esquisitices do astro. Prefere se concentrar nas histórias de dois garotos nascidos em famílias comuns que, induzidas pelo deslumbre, terminam minando suas bases. O pai de Robson cometeu suicídio. A mãe de Safechuck não achou ruim quando passou a ser alojada em quartos de hotel cada vez mais distantes das suítes onde Michael abusava de seu filho. A mãe de Robson considerava normal que o menino de 7 anos ficasse em Neverland com o ídolo enquanto a família passeava. O saldo é devastador: hoje, a senhora Robson é odiada pela família e proibida de conviver com o neto, filho de Robson; Safechuck — o que se mostra mais abalado pelo que viveu — diz que não sabe se um dia perdoará à mãe.
Talvez o dado mais incômodo revelado no programa é que os dois personagens não achavam errado nem se sentiam mal quando eram seduzidos por Michael. Mesmo depois de tudo, o amor deles pelo pop star persiste, como fica evidente nos depoimentos. Embora chorem e se mostrem machucados pela relação abusiva, jamais usam termos duros com o cantor. Safechuck e Robson — que, depois de adulto, se transformaria em coreógrafo bem-sucedido de Britney Spears e da boy band ‘NSync — testemunharam a favor de Michael durante o processo de 1993. No segundo escândalo, que culminou no julgamento de 2005, Safechuck preferiu não ajudar de novo, mas Robson saiu em socorro do amigo: os depoimentos dele e do ator Macaulay Culkin foram essenciais para a absolvição do cantor pelo júri.
Carregar tais segredos era um fardo. Safechuck mergulhou nas drogas e teve depressão. Robson enfrentou crises de ansiedade até buscar tratamento psicológico. Só aí conseguiu se abrir, arrastando a família para uma catarse. Os dois partilham a razão central para expiar seus traumas: após eles se tornarem pais, tudo o que Michael fez com ambos de repente se projetou em seus filhos. Mesmo tardiamente, eles tinham de matar seu lobo em pele de pop star.
Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626
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