Clássico dos clássicos da literatura, referência para autores diversos, de Gilberto Freyre a Lydia Davis, o catatau Em Busca do Tempo Perdido, obra-prima do francês Marcel Proust, volta às livrarias na edição gráfica compacta lançada pela Nova Fronteira em 2002, mas há anos fora de catálogo: um box que reúne em apenas três tomos os sete volumes da série memorialística, com tradução redonda do poeta carioca Fernando Py. “Françoise, com o cansaço de seus olhos de mulher já de idade, e que aliás via tudo quanto se referia a Combray numa vaga lonjura, distinguiu não o gracejo contido naquelas palavras, mas sim que deviam mostrar alguma graça, pois não se relacionavam com o resto da conversa, e tinham sido lançadas com força por alguém que ela sabia ser brincalhão”, diz trecho de O Caminho de Guermantes, terceiro romance da saga.
O colossal esforço de Py, de texto saboroso, mas não derramado, é digno de nota. Uma outra edição da série, publicada pela Globo, foi feita a nada menos que dez mãos: No Caminho de Swan, À Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes e Sodoma e Gomorra, foram vertidas para o português pelo gaúcho Mario Quintana. Outro poeta, o pernambucano Manuel Bandeira, assinou a tradução de A Prisioneira junto com Lourdes Sousa de Alencar, e o mineiro Carlos Drummond de Andrade verteu A Fugitiva. O Tempo Redescoberto ficou a cargo de Lourdes Sousa de Alencar. Embora sozinho, Py não perde a mão: mantém o estilo ao longo dos milhares de páginas que compõem a obra, um modelo para escritores que depois se debruçaram sobre memória, com direito a devaneios e floreios intelectuais de tirar o leitor do eixo.
Parte desses devaneios é, aliás, examinada pelo psicanalista Philippe Willemart em Os Processos de Criação em À Sombra das Raparigas em Flor – A Pulsão Invocante e a Psicologia no Espaço em Proust, recém-editado pela Ateliê. Embora seu público-alvo sejam profissionais e estudantes de psicologia, o livro traz insights interessantes sobre o segundo volume de Em Busca do Tempo Perdido. “Embora o narrador distinga o sono do sonho do herói, a realidade histórica e a arte, o herói-adolescente perambula ‘mergulhado num sono agitado’, como se o estado de vigília não se afastasse do sono e do sonho quando as categorias de tempo e de espaço kantianas não enquadrem os acontecimentos oníricos”, escreve em certa passagem Willemart. Cabeção? Com certeza. Mas não se poderia esperar muito menos de Proust.