The Cut (O corte, em tradução literal) tinha tudo para se tornar um dos favoritos ao Leão de Ouro do 71º Festival de Veneza. A direção é do alemão de origem turca Fatih Akin, autor de filmes fortes como Contra a Parede, Urso de Ouro em Berlim em 2004, e Do Outro Lado, melhor roteiro em Cannes em 2007. O personagem principal é interpretado por Tahar Rahim, que tem feito papéis importantes desde que foi revelado em O Profeta, de Jacques Audiard, em 2009. E o tema é sério, daqueles que costumam agradar em festivais europeus: o genocídio armênio. Mas a recepção ao longa-metragem na sessão de imprensa, realizada na manhã deste domingo, foi a pior possível, com risos fora de lugar, para dizer o mínimo. Só mesmo se der a louca no júri para The Cut se sair bem na competição.
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Akin usa como pano de fundo de sua história o massacre de armênios cristãos perpetrado pelo Império Otomano – que ocupou boa parte do Oriente Médio e do Norte da África entre os séculos XIII e XX – na Primeira Guerra Mundial, com o apoio da Alemanha e da Áustria-Hungria. Os armênios eram obrigados a percorrer grandes distâncias nas chamadas marchas da morte e abandonados, sem comida e sem água, para morrer em campos de concentração. Estima-se que entre 1 milhão e 1,5 milhão de pessoas tenham perecido assim. O extermínio sistemático provocou uma diáspora de armênios, que se instalaram em vários países, inclusive no Brasil.
Nazaret Magoonian (Rahim) é um ferreiro que tem sua casa invadida em uma noite de 1915, deixando para trás a mulher e as duas filhas gêmeas. Junto com outros homens armênios, ele é obrigado a fazer trabalho pesado, construindo estradas como prisioneiro dos otomanos. Todos são tratados com violência e, quando a construção termina, sumariamente assassinados. O turco encarregado de cortar seu pescoço, condenado à prisão por roubo, consegue apenas romper suas cordas vocais, deixando-o mudo, o que vem bem a calhar para a história – até então, ele falava em um terrível inglês com sotaque, como todos os armênios de The Cut, enquanto os turcos falam a sua própria língua. A partir daí, Nazaret se lança em uma longa jornada em busca de sua família: ele caminha pelo deserto, é acolhido por um fabricante de sabão, encontra a cunhada à beira da morte em um campo de concentração e finalmente descobre que as suas filhas sobreviveram, e então vai atrás das duas em Cuba e depois nos Estados Unidos.
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Akin quis fazer um épico daqueles de que o cinema americano tanto gosta, com tons melodramáticos e um quê de western sobre um pano de fundo histórico. Só que não funciona. Os diálogos são dignos de telenovelas, e nem um bom ator como Rahim consegue fazer muita coisa para salvá-los. Se fosse bem-sucedido, o longa serviria para apresentar a um público mais amplo um episódio da história ainda pouco abordado no cinema – e que a Turquia nega que tenha acontecido. Mas, como o outro melodrama da competição, 3 Coeurs, de Benoit Jacquot, não consegue fazer o espectador comprar a sua ideia básica, o que é fundamental para um gênero que brinca com a verossimilhança.
A noite do sábado teve sessão para imprensa de outro filme sobre jornadas pelo deserto, com pitadas de western: o francês Loin des Hommes (Longe dos homens, em tradução literal), de David Oelhoffen. O cenário, agora, é a Argélia de 1954, que se rebela para tornar-se independente da França. O professor Daru (Viggo Mortensen, colocando em prática suas habilidades de poliglota e falando francês, árabe e espanhol) é encarregado pelos franceses de levar Mohamed (Reda Kateb), acusado de matar o primo, a outra vila. No caminho, eles se deparam com soldados rebeldes e franceses e formam um laço. Os dois atores principais estão bem nesta boa adaptação do conto O Hóspede, de Albert Camus. Um alívio perto de The Cut.