Cabelo ruim, alisamento, escova. Todos esses termos criados e usados com a explícita finalidade de esconder os fios crespos na cabeça das mulheres de pele negra estão sendo cortados do seu dia a dia. Nestes tempos de garotas decididas, que assumem sua identidade e têm orgulho de sua condição, exibir a cabeleira cacheada virou atitude, e das que mais se disseminam. Não pense que é fácil. A chamada transição capilar, o esquisito nome técnico da passagem dos cabelos quimicamente tratados para a textura natural, é demorada e exige dedicação. Mesmo assim, a ela já recorreram Beyoncé, Viola Davis e Alicia Keys, nos Estados Unidos, e Taís Araujo e Ludmilla, aqui. “Para muitas de nós, o alisamento nunca foi uma opção estética escolhida somente por nosso próprio desejo, mas sim uma imposição social disfarçada de cuidado”, já disse Taís, uma espécie de musa da causa.
O vento virou. Um dossiê divulgado pelo Google BrandLab sobre as palavras mais usadas no mundo da beleza mostra que as buscas por “cabelos crespos” cresceram 232% no último ano, ultrapassando a pesquisa sobre “cabelos lisos”. A procura por informações sobre transição capilar, por sua vez, teve aumento de 55% em dois anos. Atenta aos usos e costumes, a Netflix produziu e acaba de lançar o filme Felicidade por um Fio. Depois de uma crise no relacionamento e no trabalho, a protagonista Violet (Sanaa Lathan) decide se livrar das longas madeixas alisadas e assumir seu cabelo crespo como parte de sua transformação.
Tanto na ficção quanto na vida real, o processo é complicado. A primeira grande dúvida: partir para o big chop, ou seja, cortar tudo de uma vez bem curtinho, ou ir aos poucos, convivendo da melhor maneira possível com raiz crespa e pontas alisadas? Fazem parte da transição uma limpeza profunda do couro cabeludo duas vezes por semana com xampus especiais, para remover resquícios de produtos químicos, e hidratação constante, da raiz à ponta, à base de óleos naturais (o da moda é de coco). O processo demora de seis meses a um ano e proíbe o uso de chapinha e escova, porque elas danificam o fio que nasce. Acostumada a ir ao salão para alisar o cabelo desde os 10 anos, a publicitária carioca Marcella Farias, de 24 anos, passou por tudo isso em 2015 e, segundo afirma, se encontrou. “Alisar para atingir um padrão fere a nossa autoestima”, garante.
Responsável pela transformação de Taís Araújo (“Quando ela fez, em 2006, nem sabia mais como era o seu cabelo”), o cabeleireiro Wilson Eliodorio, de São Paulo, lembra que em sua maioria os produtos usados na tal transição capilar são recentes, lançados nos últimos dois ou três anos. “Esse movimento de assumir o cabelo crespo vai além de uma tendência. É uma afirmação de identidade”, diz a antropóloga Adriana Quintão. A cabeleira black power, que já foi um instrumento político, agora reaparece nas cabeças femininas expressando exatamente o que o nome indica: poder.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605