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Como uma demissão transformou Saramago em escritor – e Nobel da Literatura

No centenário do autor português, que começou a escrever perto dos 60 anos, seu legado e obra ainda reverberam na comunidade lusófona e fora dela

Por Gabriela Caputo Atualizado em 16 nov 2022, 12h44 - Publicado em 16 nov 2022, 08h00
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  • O escritor português José Saramago (1922-2010) não romantizava a velhice. “Ser velho é uma merda”, dizia com frequência à esposa, a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Río. Curiosamente, foi na maturidade que Saramago se tornou de fato um escritor celebrado — e relembrado nesta quarta-feira, 16 de novembro, data que marca seu centenário de nascimento. Prêmio Nobel de Literatura em 1998, Saramago não teve formação universitária e se dedicou a diversos ofícios antes de ser um romancista. Ele foi serralheiro, funcionário público, jornalista e tradutor, e só mergulhou de cabeça na escrita perto dos 60 anos de idade.

    Mais precisamente, foi aos 58, quando publicou Levantado do Chão (1980), que Saramago virou um nome para se prestar atenção – 33 anos depois de Terra do Pecado, seu primeiro romance, de pouca repercussão. Até sua morte, em 2010, foram 17 romances, além de peças teatrais, contos e memórias. O episódio que levou Saramago a mudar de profissão já na meia-idade – uma demissão – poderia acontecer com qualquer cidadão comum, não fosse o cenário que Portugal enfrentava no pano de fundo. Em abril de 1974, a Revolução dos Cravos tomou as ruas do país e, com um golpe militar, derrubou a longa ditadura António de Oliveira Salazar. Saramago, contrário ao salazarismo e militante do Partido Comunista Português, era vice-diretor do tradicional Diário de Notícias naquela época. Acusado de ter feito uma “limpeza política” por demitir 23 jornalistas que exigiram que ele publicasse um documento, que ia contra o estatuto editorial do jornal, ele próprio foi despedido em novembro de 1975.

    Em Cuba, José Saramago e Gabriel Garcia Marquez durante comemoração dos 40 Anos da Revolução Cubana, 1999.
    Em Cuba, José Saramago e Gabriel Garcia Marquez durante comemoração dos 40 Anos da Revolução Cubana, 1999. (VEJA.com/AFP)

    Saramago dizia que sua passagem por vários ofícios foi fruto das circunstâncias impostas pela vida. Com a fatídica demissão, se deparou com a oportunidade e a necessidade de escolher entre buscar um novo emprego que lhe fornecesse seu ganha pão, ou se entregar de vez a um projeto maior e dedicar-se à escrita em tempo integral. Assim, optou, vez por todas, pelo Saramago ficcionista. Para ele, foi ali que sua vida ganhou sentido claro. “Ao longo de todo esse tempo e todas essas atividades, vinha aproximando-se, sabendo ou não, do que realmente me interessava”, falou em 1988 ao hoje extinto Jornal da Tarde.

    Como reflexo de sua visão política afiada, suas obras são conhecidas pelo tom crítico e de denúncia, inspiradas em contextos históricos e político-sociais da maior importância. Dos romances, destacam-se A Jangada de Pedra (1986), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Ensaio Sobre a Cegueira (1995). Pela vivência engajada, também causou polêmicas por criticar enfaticamente, por exemplo, a Igreja Católica. Certa vez, condenou o comportamento de Israel no conflito com os palestinos, declarando que não haviam aprendido nada com as dores de seus antepassados no Holocausto — postura que o levou a ser chamado de antissemita.

    Na forma, Saramago reflete a liberdade que desejava para si nos personagens de suas narrativas. Ele trazia para o papel a cultura rural, em que a oralidade é inerente à arte de contar histórias, concebendo um texto que foge às normas de uso da pontuação, com frases longas e fluxos de consciência. Da multiplicidade de vozes, resulta uma literatura rica que fascina seu leitor e exige dele na mesma medida. Saramago não nasceu escritor, mas escritor se fez. E, 100 anos depois, sobrevive através de suas palavras.

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