Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre narra cenas em que sinhás, enlouquecidas pelo confinamento a que eram submetidas e pela traição frequente do marido, um senhor de engenho que se servia de escravas à revelia de suas vontades, se vingavam das rivais das piores maneiras. O livro, um dos mais importantes a propor uma interpretação do Brasil no início do século XX, ficaria marcado mais pela forma como retratava a relação entre brancos e negros do que pela maneira como pintava o jogo de força entre homens e mulheres – fossem elas sinhás ou escravas. A desigualdade entre os gêneros, no entanto, é histórica, como provam os próprios relatos colhidos por Freyre. Não causa espanto, portanto, que casos de assédio perdurem e que as vítimas, há séculos em desvantagem, sintam medo de denunciá-los. Dito isso, é hora de dizer: deixem Su Tonani em paz. A figurinista já deu sua contribuição para jogar luz sobre um tema ao mesmo tempo duro e relevante.
Se Su, como Susllem Tonani é conhecida nos bastidores, teve coragem para relatar o assédio que sofreu por parte de um dos maiores galãs da Globo, a gigante nacional do entretenimento, e agora se sente justiçada pelo retorno que obteve, está no direito de se recolher e se preservar. Não importa por que razões ela não quis transformar o caso em inquérito policial nem se teve ou não teve affair com algum ator, como insinuou uma notícia da semana passada, que se alastrou como fogo pela internet, em especial pelas redes sociais, e levou a figurinista a escrever um novo texto para o blog #AgoraÉqueSãoElas, da Folha de S.Paulo, o mesmo onde denunciou José Mayer no final de março. No texto desta sexta, depois de ser agredida de maneira vil nas redes sociais por um suposto affair que em nada mudaria a história, Su se vê obrigada a se defender. Ela nega ter tido uma relação amorosa com Mayer – o que, dizia a fofoca, a teria levado a dizer não à polícia. Su Tonani não precisava explicar nada. O que o ator fez continua sendo errado, e só à figurinista cabia levar a história a outra esfera.
Como o site de VEJA noticiou dia 11 de abril, Su foi chamada a depor sobre os episódios de assédio e assim dar início a um processo penal contra o galã, mas não era obrigada a fazê-lo. O delegado Rodolfo Waldeck, da 32ª Delegacia da Polícia Civil do Rio, que é próxima aos estúdios da Globo, explicou que o crime só seria investigado se Su depusesse contra Mayer, e ela apenas o faria se de fato desejasse mover uma ação penal contra o ator. O crime de assédio sexual, vale lembrar, pode resultar em pena de até dois anos de prisão.
Tal informação, a de que o inquérito só prosseguiria com a participação de Su, consta do mandado de intimação enviado por Waldeck à figurinista. Ela se valeu da Defensoria Pública do Rio de Janeiro para respondê-lo, declarando, por meio de um ofício emitido pelo órgão, que não pretendia depor contra José Mayer.
De acordo com advogada criminalista Kátia Tavares, do Instituto dos Advogados do Brasil, o assunto deve se encerrar aqui. “O ofício da Defensoria Pública deixa claro que ela não quer representar, ela não é obrigada a comparecer, portanto”, diz. Segundo Kátia, o delegado se mobilizou para abrir o inquérito porque o caso se tornou público e ele, como representante do Estado, deve se colocar à disposição da vítima para ajudá-la. Se ela não quer dar prosseguimento ao caso na Justiça e ele acolher a decisão, como aconteceu, acabou. “É sempre preciso avaliar caso a caso. Mas é difícil que um delegado instaure um inquérito sem a denúncia da vítima”, diz.
Justiça feita
Conhecida desde que publicou a denúncia contra José Mayer no blog #AgoraÉqueSãoElas, no dia do último capítulo da novela A Lei do Amor, a figurinista Su Tonani se viu no centro de um intenso debate sobre os efeitos criminosos que o machismo pode ter. Machismo, vale dizer, foi o termo usado pelo próprio galã para justificar a sua conduta. “Tristemente, sou sim fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas”, escreveu Mayer na carta pública em que admitia ter agido mal – e fazia da falha um problema cultural da sua geração.
O debate público que se seguiu, juntamente com a confissão de Mayer e seu afastamento pela Globo, que o tirou da novela O Sétimo Guardião, de Aguinaldo Silva, foram, para Su Tonani, suficientes para encerrar o assunto. “Sinto que a minha história teve começo, meio e fim. Terminou na terça à noite, 04 de abril de 2017, com um pedido de desculpa da Rede Globo e uma carta de confissão do José Mayer, ambos lidos no Jornal Nacional. Senti que tive a justiça que desejava. Pouco creio que a punição criminal para o meu caso tenha alcance maior que já tivemos. Mais potência. Seja mais transformadora”, escreveu no texto publicado nesta sexta-feira.
“O meu objetivo ao expor a minha história foi sair da invisibilidade, romper o silenciamento imposto, transcender este lugar de vítima que me era insuportável. Sou apenas uma profissional que, cansada de ser desrespeitada, lutou pelo que acredita. Por que incomodou tanto o meu silêncio pós-relato? Talvez porque eu não tenha cumprido o papel da oportunista exibicionista que o patriarcado esperava. Talvez porque não tenha sido a liderança, o exemplo que queriam que eu fosse. Desculpe desapontar estas e estes”, especula Su no texto, em que pede passagem para seguir com sua vida.
Uma vez que “assédio”, o assédio puro sem conotação moral ou sexual, significa cerco, perseguição, importunação indevida, é hora de dizer: chega de assédio. Deixem Su Tonani em paz.