O evento foi curto e limitado à pequena e endinheirada elite cafeicultora paulista, que financiou a organização e pagou caro para desfrutar as três noites de palestras, exposições, leituras de poemas e apresentações musicais no Teatro Municipal de São Paulo. Na plateia, não foram poucos os momentos de espanto, com vaias, urros, relinchos, latidos e outras onomatopeias usadas para protestar contra o que se via. O poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, declamado por Ronald de Carvalho, foi especialmente vaiado. Houve quem atirasse no palco tomates e batatas — ato que, segundo historiadores, foi encomendado por Oswald de Andrade para manter o tom beligerante e chocar a burguesia. A repercussão da barafunda ficou restrita quase exclusivamente aos jornais locais, com cobertura mais jocosa que elogiosa. No entanto, as meras três noites da Semana de Arte Moderna — 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, mais precisamente — desencadearam um terremoto que não acabou. Ainda hoje, seu impacto reverbera e influencia de forma indelével a cultura e o imaginário nacionais.
Não só a Semana ganhou importância ao longo das décadas posteriores: o modernismo cresceu e foi incorporado ao nosso DNA. A redescoberta que promoveu a cultura popular (barroca, caipira, nordestina, sertaneja, negra, indígena — em suma, brasileira) remodelou a forma de fazer e pensar arte no país. Revisitada um século depois, ficam claras algumas contradições e deficiências de suas propostas; mas também emerge a enorme contribuição do modernismo à cultura brasileira. O movimento foi a mais bem-sucedida tentativa de forjar uma identidade cultural nativa. “Enquanto a Espanha tem o Instituto Cervantes e a Alemanha conta com o Goethe, o Brasil nunca teve nenhuma instância parecida para promover sua cultura nacional”, afirma o brasilianista Kenneth Jackson, professor da Universidade Yale. Para ele, coube ao modernismo ser o maior responsável pela projeção da “brasilidade” para além do tríptico clichê Carnaval-praia-futebol.
22 por 22 – A Semana de Arte Moderna Vista Pelos Seus Contemporâneos
Os organizadores e participantes da Semana — Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Zina Aita, Ronald de Carvalho, Guiomar Novaes, Heitor Villa-Lobos, Graça Aranha, entre outros — lutavam contra o passadismo, o academicismo, o parnasianismo e várias formas estéticas que julgavam ultrapassadas e incapazes de retratar o país que tentava se emancipar culturalmente. Assim, abraçaram as vanguardas europeias — futurismo, dadaísmo, expressionismo — para tentar derrubar o passado e erigir algo novo, brasileiro, moderno, eliminando as fronteiras entre o erudito e o popular. Proposta pretensiosa? Sim, sem dúvida. Mas, em muitas áreas, eles conseguiram.
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A iconoclastia renovadora do modernismo validou o português brasileiro e coloquial falado nas ruas; proporcionou os quadros de Tarsila do Amaral — obra que, apesar da clara influência de escolas europeias, é genuinamente nacional nas cores, temáticas e formas. E ainda gerou uma original teoria estético-filosófica que celebra uma nação ao mesmo tempo conectada às suas raízes e cosmopolita: a antropofagia, hoje na ponta de lança das ciências humanas no mundo. “A antropofagia é o momento mais rico da dialética modernista. A valorização nacional com abertura para o estrangeiro é extremamente atual, com a internet e a globalização”, explica Marcia Camargos, pesquisadora da Universidade Sorbonne.
Artes plásticas na Semana de 22
Poucas décadas depois da Semana, o Estado abraçou o modernismo e os artistas modernistas retribuíram o afeto ao projeto estatal de nacionalismo cultural — embora não aos seus princípios totalitários. Getúlio Vargas incumbiu seu ministro da Educação, Gustavo Capanema, da tarefa de renovar a área cultural, imprimindo-lhe cores nacionais. Assim, o comunista Portinari virou o artista-símbolo do Estado Novo (1937-1945) e Mário de Andrade criou o primeiro instituto estatal de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional, que posteriormente viraria o Iphan. Depois, em 1972, a ditadura militar comemorou o cinquentenário da Semana e se apropriou dos ideais nacionalistas do movimento. Felizmente, é improvável que Bolsonaro faça algo parecido no centenário — não por falta de oportunidade, mas por ignorância e total desprezo pela cultura.
Para além da literatura e das artes plásticas, o espírito modernista é a seiva primordial do projeto da Brasília de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer; da bossa nova; do tropicalismo; do cinema novo; e, hoje, de iniciativas ousadas como o complexo de arte de Inhotim. “Com o tropicalismo, Caetano Veloso pôs o modernismo na sala de estar dos brasileiros”, diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E a ginasta Rebeca Andrade, quem diria, recolocou-o no palco mundial: a apresentação-solo da atleta na Olimpíada de Tóquio sintetizou as principais bandeiras modernistas. Uma brasileira negra de origem periférica apresentando ao mundo uma coreografia com movimentos acrobáticos e rítmicos ao som de funk mixado com uma peça de Bach. O conjunto resume a antropofagia modernista, um biscoito fino para as massas. A utopia modernista é o retrato de um Brasil que pode dar certo, sim, e encontrar seu lugar no mundo como potência criativa. Em tempos de crise, o centenário da Semana de 1922 oferece um antídoto inspirador.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771
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