Os livros para ser ouvidos, sobejamente conhecidos pelo nome em inglês — audiobooks —, nasceram em 1932, nos Estados Unidos, como ferramenta de inclusão social. Começaram a ser feitos no estúdio de gravação de uma fundação para cegos, registrados em discos de vinil, com capacidade de no máximo quinze minutos para cada lado do LP. No ano seguinte, deputados e senadores aprovaram uma emenda que autorizava a Biblioteca do Congresso a entrar no negócio, que não parou de crescer. Inicialmente eram as peças de Shakespeare, a Constituição etc., e o céu virou o limite. A partir dos nichos dedicados à deficiência visual, os volumes de viva voz extrapolaram as fronteiras, de mãos dadas com os avanços da tecnologia. Hoje, por meio de um smartphone com acesso a lojas de aplicativos, é possível baixar qualquer um dos 44 000 títulos lançados anualmente nos Estados Unidos — é um naco que responde, por enquanto, por 6,5% do mercado livreiro, mas que se expande rapidamente. Os lançamentos surgem em ritmo mais veloz que o de volumes em capa dura. É uma febre que começa a desembarcar com força no Brasil.
Em junho deste ano, três grandes editoras se uniram para criar a plataforma de venda Auti Books, que lançará no próximo mês um plano de assinaturas. A Ubook, pioneira por aqui, anunciou planos de expansão. A Tocalivros juntou-se ao Google Play Livros e à Kobo. O gigante sueco Storytel acaba de estrear seu serviço no Brasil, e a Amazon deve aportar no país nos próximos meses com um serviço de literatura para os tímpanos. Diz Claudio Gandelman, CEO da Auti Books: “O brasileiro lê pouco e passa muito tempo no trânsito, uma combinação extremamente promissora para decidir ouvir um livro. Estamos no início de uma revolução”. Trata-se de uma reviravolta que já possui alguma cara: mais da metade dos usuários tem até 34 anos e é do sexo masculino. Nos Estados Unidos, cerca de 60% dos ouvintes realizam atividades como a lição de casa e o almoço enquanto escutam, por exemplo, Nicole Kidman emprestando a voz a Ao Farol, de Virginia Woolf, em inglês. Afirma André Palme, gerente da Storytel Brasil: “Se voz e texto não combinam, dificilmente o audiobook vai para a frente”. Vozes aveludadas são adequadas para histórias românticas. Tons dramáticos, empostados, servem ao suspense. Outro recurso que atrai ouvintes é o próprio autor (desde que seja uma celebridade, logicamente) narrar sua obra. Gisele Bündchen lê a introdução de seu livro Aprendizados; Lázaro Ramos narra Na Minha Pele e Drauzio Varella, Estação Carandiru.
Dada a velocidade de expansão dos livros para ser ouvidos, e sua natural adoção pela juventude plugada aos fones, agora preferencialmente sem fios, os educadores indagam: escutar um livro vale tanto quanto lê-lo? Alguns estudos nos Estados Unidos chegaram a sugerir que o cérebro é incapaz de memorizar os livros apenas narrados em voz alta, sem que os olhos acompanhem as palavras, as frases, os parágrafos. Essa impressão era um lugar-comum até que, em 2016, o psicólogo americano Daniel Willingham, da Universidade de Virgínia, fez uma pergunta cuja resposta mudou tudo: ouvir um livro é trapaça? Não, não é, concluiu Willingham. “Não há real diferença entre ouvir um livro e lê-lo”, diz ele. O argumento da contrafação pressupõe que o leitor ficou apenas com a recompensa (o conteúdo) sem a contrapartida (o trabalho de leitura), e que, para nossos mecanismos cerebrais, ouvir é mais fácil do que ler. Isso é verdade até algum momento da infância, em torno dos 10 anos, um pouco após a alfabetização. Depois, a rigor, não existe diferença do ponto de vista neurológico e de aprendizado. E, no entanto, não há audiobook que consiga, por mais perfeito que seja o narrador, entregar o balé de vírgulas, pontos (quando há) e frases longuíssimas de um escritor como José Saramago, de Ensaio sobre a Cegueira: “…O médico perguntou-lhe, Nunca lhe tinha acontecido antes, quero dizer, o mesmo de agora, ou parecido, Nunca, senhor doutor, eu nem sequer uso óculos, (…)”. O bom-senso recomenda não abandonar as versões em papel ou digitais, com as letras impressas, seja para saber como se escrevem as palavras, seja para sentir o prazer inigualável, e automático, de cotejar o escrito com o lido, mentalmente.
Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658