As gravações de TV voltam sob novas regras
As emissoras começam a reabrir os estúdios e retomar a produção de novelas, seguindo cuidados rigorosos e tentando resolver o dilema do beijo
Pioneira mundial na adaptação das radionovelas para a telinha, a televisão brasileira mal começou a produzir seus folhetins e já estava, em 1952, quebrando um tabu. Naquele ano, levou aos pudicos lares brasileiros um beijo na boca — na verdade, um selinho muito comportado entre os protagonistas de Sua Vida Me Pertence, na extinta TV Tupi. Criou-se aí o primeiro mandamento do gênero: novela tem de ter romance, paixão, abraço e, claro, ósculos em profusão. Isso até ocorrer a pandemia, sempre ela, e dar um chega pra lá nas manifestações de afeto, inclusive na ficção. Pela primeira vez na história, tramas em andamento, religioso programa de uma infinidade de famílias brasileiras, tiveram de ser interrompidas por causa do risco de contágio nas gravações. Agora, as emissoras começam a encarar a volta aos estúdios com regras novas, complicadas e, em muitas situações, o oposto do que constitui a alma das atrações. No caso das novelas, a Record foi a primeira a anunciar data para retomar as gravações: 10 de agosto. A Globo, depois de sucessivos adiamentos — falou-se em 13 de julho, depois 17, em seguida 23 e por fim 29 —, planeja agora o regresso às gravações de Amor de Mãe e Salve-se Quem Puder no mesmo 10 de agosto, embora a retomada das exibições só deva acontecer no ano que vem. Fica a pergunta que não quer calar: com ou sem beijo?
AMOR DE MÃE
INTERRUPÇÃO
15 de março (gravação)
21 de março (exibição)
RETOMADA
10 de agosto (gravação)
2021 (exibição)
O “NOVO NORMAL”
Beijos (acima, nos bons tempos) serão evitados e, quando houver, cogita-se usar recursos digitais.
A ação deve girar só em torno do núcleo principal. O número de capítulos caiu pela metade.
A resposta não é fácil nem imediata, visto que reinventar a novela envolve uma intrincada engrenagem. Para o retorno dos trabalhos no Projac, a maior central de produção de conteúdo da América Latina, por onde circulavam 6 000 pessoas por dia até as gravações pararem em 17 de março, a Globo preparou um protocolo de dezoito páginas, ao qual VEJA teve acesso com exclusividade. Primeira providência: vai ter ali muito menos gente ao mesmo tempo. Todos assinarão um termo se comprometendo a usar máscara e avisar caso apresente sintomas da Covid-19 ou tenha contato com infectados. Quem for trabalhar terá a temperatura medida na entrada, será testado e, se positivo, afastado por 21 dias. Os próprios atores farão maquiagem e cabelo, além de levar de casa suas refeições. À exceção dos artistas, toda a equipe usará macacão e proteção nos calçados. A distância mínima é de 2 metros. E beijo? “A orientação é não haver contato físico. Se realmente for indispensável para a cena, um comitê avaliará, tendo em conta a segurança”, adianta Ricardo Waddington, diretor de produção dos Estúdios Globo.
Nessas circunstâncias, reescrever enredos tem sido um exercício de excepcional criatividade. “Vivemos uma situação inédita, sem fórmulas preestabelecidas. Estamos estudando muito para descobrir maneiras de continuar entregando um produto de qualidade, e preservando, ao mesmo tempo, a saúde dos funcionários”, explica Silvio de Abreu, diretor de dramaturgia da Globo. Para o autor Walcyr Carrasco, colunista de VEJA, que escreve a continuação de Verdades Secretas, o maior desafio está nas mãos de quem tem enredos já no ar, interrompidos pelo vírus. “A maneira como esses autores lidarão com os problemas vai guiar as produções seguintes”, afirma.
Pelas novas regras, saem de cena viagens e gravações externas e noturnas. A filmagem de refeições também está suspensa, com o risco de causar um buraco descomunal na continuidade de cenas. Os dias e noites serão mais compridos, para reduzir as trocas de roupa. Nas cenas de aglomeração, figurantes poderão ser incluídos digitalmente. E beijo? A Globo ainda não bateu o martelo, mas estuda usar recursos de computação gráfica não só para ele, mas também para abraços e mãos dadas. Resta ver se funcionará. “O brasileiro é caloroso e isso se reflete nos folhetins. Com as limitações, a novela pode deixar de ser como a conhecemos”, teme Nilson Xavier, crítico de TV. A novela global das 9, Amor de Mãe, que deveria ter acabado em maio com mais cinquenta capítulos, terá só mais 25, com a ação girando em torno do núcleo principal — cogita-se isolar os atores em um hotel até o fim das gravações. “O retorno ao estúdio será desafiador para todo mundo. A orientação é que a gente só saia para ir gravar e volte para casa”, conta Guilhermina Guinle, a Dominique de Salve-se Quem Puder, das 7.
CALDEIRÃO DO HUCK
INTERRUPÇÃO
15 de março (gravação em estúdio)
Permaneceu no ar, com quadros já prontos ou gravados em casa
RETOMADA
1º de julho (gravação em estúdio)
18 de julho (exibição)
O “NOVO NORMAL”
Plateia virtual (acima) e participação remota de convidados. Medição da temperatura da equipe.
Tapetes higienizadores na entrada e marcações no chão da posição de cada um, para garantir distanciamento.
A Record segue cartilha semelhante à da Globo, com escalonamento de equipes para controlar o fluxo de pessoas no Complexo Casablanca, antigo RecNov. Haverá medição de temperatura, teste de todos os atores quinze dias antes da volta ao trabalho, no máximo trinta pessoas no estúdio — entre elas um consultor médico — e camarins usados individualmente, apenas para troca de roupa. Detalhe: é obrigatório o uso de máscara até nos ensaios, uma contradição no exercício da arte da dramaturgia. E beijo? Pois é: a novela Amor sem Igual retoma as gravações em 10 de agosto sem beijo nem abraço. Não se sabe quanto a abstinência vai durar, e a emissora espera as reações para seguir com os trabalhos nas outras tramas.
Em países onde o pior da pandemia já passou, a programação está sendo retomada e a questão das demonstrações de afeto vem sendo abordada de maneiras criativas. Em Portugal, a atriz Mariana Monteiro, da novela Terra Brava, postou no Instagram sua imagem beijando uma bola de tênis na exata altura da boca de seu par romântico deitado em uma cama de hospital. O computador, depois, selou os lábios que nunca se encontraram na realidade. A rede CBS, que tem no portfólio The Bold and the Beautiful, um daqueles novelões americanos que nunca acabam (estreou em 1987), e a série teen Riverdale, tem apelado para manequins filmados de longe na hora do encontro apaixonado. “Os atores estão dando seu primeiro beijo em borracha pintada”, brinca Bradley Bell, produtor da CBS. Outro recurso foi contratar o cônjuge dos atores na vida real para fazer o par romântico. Prevê-se que os diálogos em geral fiquem mais picantes e o sexo por telefone, mais frequente. Há produtoras pensando em testar grupos de casais de ficção para o novo coronavírus, isolá-los, deixar passar o período de quarentena e em seguida gravar as cenas que simulam sexo, mantendo o confinamento até o fim da jornada. A computação gráfica deve ser a saída para muitas atrações, sobretudo as mais apimentadas. “Nada é fácil e há muitas perguntas sem resposta. Mas vamos nos adaptar”, diz Ted Sarandos, diretor de conteúdo da Netflix.
MASTERCHEF
INTERRUPÇÃO
Estreia em 26 de maio adiada
RETOMADA
14 de julho
O “NOVO NORMAL”
Um vencedor por episódio, em vez de um por temporada, para reduzir o tempo de convivência. Maior distância entre participantes (acima) e bancadas higienizadas de hora em hora. Fim do preparo conjunto de receitas.
Enquanto as novelas ensaiam sua volta, programas de variedades já retornaram ao ar, com esperadas alterações. Os cuidados redobraram quando a apresentadora Eliana, depois de dois meses e meio parada, foi gravar nos estúdios do SBT em 10 de junho, com convidados presentes, e duas semanas depois testou positivo para a Covid-19 (ela ficou em quarentena e já voltou ao trabalho). “Tudo leva a crer que tenha sido contaminada no estúdio. Passamos a aplicar testes rápidos em todos os que pisam no palco”, informa Fernando Pelegio, diretor artístico da emissora. Na Globo, o Encontro, de Fátima Bernardes, foi o primeiro a voltar ao vivo, sem plateia, seguido pelo Caldeirão do Huck, em que o “auditório” agora é uma tela tomada de carinhas, tal qual uma reunião pelo aplicativo Zoom. Na Record, a Hora do Faro, sem plateia ao vivo, é gravado com seis pessoas no estúdio, em vez das 500 habituais. “Sem o termômetro do público, o exercício do comunicador fica mais complexo”, admite o apresentador Rodrigo Faro. Para se adequar, um dos maiores sucessos entre os reality shows, o MasterChef, da Band, agora elege um vencedor por episódio, em vez de ser por temporada, reduzindo a convivência entre participantes de três meses para dois dias. Mesmo assim, foi criticado pela proximidade dos candidatos a chef. “Essas críticas são esperadas. Ninguém, afinal, vai protestar por excesso de segurança”, ressalta Ivana Bentes, pesquisadora em comunicação e cultura da UFRJ. Nesse enredo, que ainda gira em torno do inimigo invisível, o jeito é aguardar os próximos capítulos. E o primeiro beijo.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697