Quando a polícia encontrou seu carro vazio batido contra uma árvore, na zona rural da Inglaterra, Agatha Christie foi dada como desaparecida. O veículo estava registrado no nome do primeiro marido da escritora, que, naquele ano de 1926, havia lançado seu maior sucesso até então, O Assassinato de Roger Ackroyd. Dez dias depois do acidente, porém, ela reapareceria em circunstâncias bizarras: estava hospedada em um hotel de luxo sob o nome da jovem amante do marido. Biógrafos oficiais afirmam que a autora foi acometida de um stress pós-traumático ao descobrir que o cônjuge tinha outra. Mas, para as más línguas, tudo não passou de um golpe de marketing. Na prática, a história permanece como um dos mistérios deixados pela “rainha do crime”. Aos 36 anos, ela emergiria do episódio com garra renovada: após recusar os bens do ex infiel, assumiu a tarefa de sustentar a única filha, Rosalind, com os próprios recursos. “Continuei, empurrada pelo desejo, ou melhor, pela necessidade desesperada de escrever outro livro para ganhar algum dinheiro. Foi nesse momento que deixei de ser amadora e passei a profissional”, relata na autobiografia.
Morta em 1976, aos 85 anos, Agatha deixou 66 romances policiais, dezenove peças de teatro e diversas coletâneas de contos — um acervo que, considerando-se as métricas atuais, se equipara em vendas ao de ninguém menos que William Shakespeare: são mais de 2 bilhões de exemplares comercializados no mundo, cerca de 4 milhões por ano. Mas é preciso enxergar além dos números para captar a força de seu legado — que neste ano completa um século. Nascida em uma família de classe média da pequena Torquay, na Inglaterra vitoriana, Agatha escreveu seu romance de estreia por incentivo da irmã mais velha, que a desafiou a criar uma trama detetivesca na qual o leitor não conseguisse descobrir o assassino até as últimas páginas. Lançado em 1920, O Misterioso Caso de Styles já contém elementos que fariam a fama da escritora: Agatha é especialista em tramas que envolvem casarões, heranças disputadas, mágoas familiares e jogos de bridge em enredos tão mirabolantes quanto se vê em Assassinato no Expresso Oriente, que fala da reunião de doze suspeitos de homicídio em uma viagem de trem. Agatha notabilizou-se, sobretudo, por popularizar a mais recorrente fórmula de trama policial: o whodunnit (quem matou?, em tradução livre), que coloca vítimas, suspeitos e detetives em um jogo de charadas cuja resposta só aparece no final.
No centenário de sua estreia como escritora, uma pergunta é inevitável: afinal, a obra de Agatha Christie resistiu bem ao tempo? O projeto da editora HarperCollins de lançar oitenta novas traduções de seus romances — quatro chegam às livrarias neste mês — oferece um bom ponto de partida para investigar o tema. Como tantos escritores, ela não escapa à patrulha da correção política. O exemplo mais flagrante da “readequação” de Agatha aos tempos atuais é o desaparecimento do título O Caso dos Dez Negrinhos: após ser proclamado como “racista”, o clássico foi transformado em E Não Sobrou Nenhum. “É preciso levar em conta que uma senhora inglesa de mentalidade vitoriana usava uma linguagem bem mais conservadora e ofensiva, para os padrões atuais, ao se referir a deficientes, minorias e estrangeiros”, diz o tradutor Samir Machado de Machado.
Quando viva, a autora também teve uma celeuma com a militância feminista. Em 1961, negou entrevista a uma revista francesa com as seguintes palavras: “Nada me horroriza mais que esses artigos sobre os ‘grandes assuntos femininos’ ”. A trajetória da própria Agatha, contudo, é uma resposta a quem a acusa de desmerecer as mulheres. Com seu pioneirismo, ela abriu caminho para várias gerações de autoras policiais, da americana Patricia Highsmith à inglesa P.D. James.
Ironicamente, a evolução extraordinária das sucessoras pôs à prova as qualidades de Agatha. Centrado em exercícios de dedução, seu whodunnit tornou-se pueril perto da ficção criminal moderna, com tipos mais dúbios e alta densidade psicológica. A autora, no entanto, criou dois personagens que conservam seu charme à moda antiga: Hercule Poirot, o pequenino detetive belga de imensa vaidade, e Miss Marple, a velhinha xereta que expõe os assassinos e as hipocrisias do interior inglês. Mesmo seu estilo supostamente datado continua por aí, onipresente. A receita básica do “quem matou?” permanece em voga dos thrillers juvenis às novelas brasileiras. Novas adaptações e homenagens mostram que, com um providencial banho de loja, suas obras recuperam o viço (leia o quadro à esquerda). “Se você olhar bem no fundo, Agatha está sempre lá”, diz o biógrafo Tito Prates. Nunca menospreze a vovozinha do crime.
UMA AUTORA REINVENTADA NAS TELAS
Agatha Christie não foi só prolífica: seus romances inspiraram uma infinidade de adaptações para o cinema e a TV. Foi a própria autora quem escreveu o roteiro da primeira versão do detetive Poirot, destinada ao teatro e transplantada para a tela da BBC em 1937. Produções de outros países vieram na sequência, sem grande brilho — houve até um seriado de Miss Marple odiado e proscrito pela criadora. Quantidade, enfim, não era sinônimo de qualidade nas versões filmadas de seu trabalho. Até que, em 1974, um notável Assassinato no Expresso Oriente virou o tabuleiro. “Foi a primeira obra a contar com um elenco de primeira”, diz Mark Aldridge, autor do livro Agatha Christie na Tela. Há três anos, o ator britânico Kenneth Branagh levou uma refilmagem do longa de 1974 às telonas, vivendo ele mesmo um Hercule Poirot cujo bigode em nada lembra o handlebar que o personagem cultivava (reproduzido à perfeição por Albert Finney na primeira versão). O filme de Branagh e uma série de Miss Marple veiculada pela BBC entre 2004 e 2014 (com Geraldine McEwan e Julia McKenzie se sucedendo no papel) atualizam seu universo para novas plateias. Mas nada supera, nesse sentido, Entre Facas e Segredos (2019): embora não se baseie em nenhum livro dela, o filme com Daniel Craig faz uma justa e instigante homenagem à dama.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679