Mulheres elegantes, donas de casas colossais à beira da praia, vestem-se com as melhores grifes para levar os filhos à aula. A escola é moderna, liberal — mas, tal como os pais que matriculam seus pimpolhos ali, só na superfície: a correção da vida chique mostra sua natureza opressiva quando se monta um julgamento ridiculamente inadequado para crianças de 6 anos, no qual uma vítima de bullying é coagida a apontar seu agressor (e ela, claro, denuncia um coleguinha inocente). A cena excruciante marca o início de Big Little Lies, da HBO, e escreve nas entrelinhas o mote da série que agora chega a sua segunda temporada: a violência, o medo e o desejo de vingança não discriminam renda per capita.
O retrato de hipocrisias e falsidades é comum em séries sobre a doce vida das ricaças — como Desperate Housewives —, mas Big Little Lies supera todas na exposição sutil mas desassombrada da sujeira que suas personagens guardam sob o tapete. Celeste (em uma atuação pujante de Nicole Kidman) sofre abusos do marido (Alexander Skarsgård). Jane (Shailene Woodley) engravidou em razão de um estupro. Renata (Laura Dern), atormentada por não se dedicar exclusivamente à maternidade, vai a extremos patológicos para proteger a filha. Madeline (Reese Witherspoon) exala ódio pelo ex-marido e sua mulher atual, Bonnie (Zoë Kravitz). A sororidade, para usar o termo da moda, só se estabelece, de forma forçada, no último episódio, em uma cena brilhante na qual o grupo se envolve em um homicídio. Há apenas uma assassina, mas todas carregam sua parcela de cumplicidade, e todas mentem.
A polícia não compra a ideia de que a morte foi um acidente. A investigação continua na segunda temporada, que estreia no domingo 9. A nova leva de episódios começa meses após o crime. As mães enfileiram seus carrões na rua da escola, mas manter as aparências não é mais uma opção. Bonnie, Jane e Celeste estampam seus traumas na testa, enquanto as controladoras Madeline e Renata perdem as rédeas do grupo e de suas casas.
A honestidade truculenta de Big Little Lies é rara. Lançada em 2017, a série dirigida por Jean-Marc Vallée pegou carona no feminismo crescente de Hollywood, e saiu elevada quando, no mesmo ano, o produtor Harvey Weinstein foi jogado na fogueira por acusações de assédio e abuso, temas que percorrem todos os episódios. No Globo de Ouro em que as mulheres foram de preto, em protesto, a série embolsou quatro estatuetas, entre elas a de atriz para Nicole, que exaltou em seu discurso o poder feminino.
O romance de Liane Moriarty em que se baseia a série já foi quase totalmente esgotado na primeira temporada, mas, diante do sucesso, a autora aceitou escrever uma continuação para a HBO. As 200 páginas de roteiro vieram com um pedido: Meryl Streep. Por coincidência, a atriz era fã da série, e aceitou o convite sabendo apenas o nome de sua personagem: Mary Louise, nome de batismo de Meryl — um gracejo da autora. Mãe do assassinado, Mary Louise quer a verdade. Em uma atuação monumental — o que era de esperar —, ela aparenta ser a avó simpática, mas faz incriminações pesadas com voz mansa e olhar afiado. Novas fissuras aparecerão na superfície da tal sororidade.
Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638
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