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“Nós mulheres pretas já nascemos velhas”, diz Claudia Di Moura

Sem papas na língua, atriz e estilista fala sobre racismo, etarismo e como a publicidade fomenta esse tipo de preconceito

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 29 nov 2024, 16h10
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  • Eu não tenho uma história de superação que o branco adora ouvir. Quando eu falo branco, porém, estou, obviamente, excluindo os brancos aliados. Até porque nós pretos não vamos chegar a lugar nenhum sem esses aliados. Ao contrário do que pensam, venho de uma família estruturada do interior da Bahia, com um pai, delegado de polícia, e uma mãe professora. Então sempre estive no lugar da filha da autoridade, o que talvez tenha me salvado de eventos crueis.

    Meu pai era 14 anos mais jovem que a minha mãe, e criou a gente dizendo: “Não abaixe a cabeça para a coroa não cair”. Entregue o seu melhor e saiba falar: “Esse é o meu melhor. Não tenho mais para entregar, e se tenho, não vou fazer porque não quero”. Isso fez muita diferença na minha vida e dos meus irmãos. Eles trabalharam muito a nossa autoestima, mas é claro que eu percebia o racismo rodeando, o que sempre tratei e trato com violência. Porque racismo é crime, só que nesse país, também racista, se enquadra como injúria racial. Como tapa na cara ninguém tira, eu já trato de promover o constrangimento logo que acontece.

    Tive alguns episódios de racismo, mas nunca deixei barato. Um exemplo bem significativo foi quando mataram um irmão preto dentro do Carrefour, em 2020. Fiquei muito mexida, e naquele dia, sofri preconceito. Estava na rua do meu condomínio, onde moro no Rio de Janeiro, onde acho só tem a minha família preta. Eu tinha acabado de dar uma entrevista, estava bem vestida, penteada, com joias. De repente, uma senhora, que estava com uma cuidadora negra do lado, deu um grito para mim.

    Se aproximou e perguntou em qual casa eu trabalhava ali. Como eu já sou uma mulher que vivo armada, não relaxo porque sei que o racismo pode vir de qualquer lugar, disse: “naquela casa que tem uma árvore japonesa na frente”. Ela, com todo o esforço, que da idade, se virou para ver. Completei: “Trabalho ali, chupo p**”. Essa é a violência, o constrangimento. Por que é inimaginável, uma mulher da minha cor ter uma mansão ali? Eu vi a hora que essa mulher ia cair. Disse então que o dia que ela pensasse em humilhar a cuidadora preta, que se lembrasse que foi humilhada por uma negra igual a ela. Cheguei em casa em prantos. Liguei para o (ator) Fabrício Boliveira, e ele me disse:  “você deu uma aula. Ela vai pensar duas vezes antes de abordar uma mulher preta novamente”.

    Racismo e Etarismo

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    Na infância, não pensava em ser artista. Eu queria ser branca. Para ter passe livre, ter voz, não ser perseguida, ser protagonista. Ser branco é um privilégio porque qualquer profissão que o negro exerça, ele vai exercer tentando avançar, mas com vários empecilhos. Eu estudei pedagogia, mas a arte me escolheu.

    Hoje, sou muito resolvida com a minha autoestima. Não quero que ninguém me diga o que fazer. Eu estudei, me profissionalizei, tenho afeto, amigos, estendo as mãos para o amor, para a amizade. Por que é que tenho que passar por coisas que tinham que ter ficado há cinco séculos atrás? Tô fora!

    Agora, porém, não se trata apenas de racismo. Outra questão que eu abraço é o etarismo. A chegada na menopausa. O que é que isso traz? Uma avalanche de emoções, e que vou ter a oportunidade de mostrar pela ousadia e rebeldia da minha personagem na série “Juntas e Separadas”, que vai estrear na Globoplay. São quatro mulheres protagonistas, uma delas é a Sheron Menezes, da qual eu faço a mãe solo, que a criou com muito sacrifício e alcançou um lugar que é inimaginável para uma mulher preta periférica. Uma série essencialmente feminina.

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    Quando eu falo que me identifico muito com essa personagem, no entanto, é porque eu já carrego essa ousadia e rebeldia desde sempre. Não posso falar de etarismo sem falar de racismo. Estão de mãos dadas já que nós mulheres pretas já nascemos velhas. Nos roubam a infância, somos preteridas na adolescência, muitas nessa fase já são mães solos, tendo que cuidar dos irmãos e dos filhos. E rapidamente nos vemos no lugar de vestir a fantasia da tia Anastácia, para criar o filho dos outros, sem desejos, sem sonhos, sem valores. É disso que a gente quer falar.

    Mas estamos mudando essa engrenagem da mulher preta 50+.  Eu vou fazer 60 anos no próximo ano, mas é importante dizer que mesmo com essas pautas alcançando repercussão e impacto nas decisões criativas e organizacionais, nós que carregamos todas essas bandeiras na pele, sabemos que não tem espaço para descanso. A luta é permanente, porque sem ela, nada garante a continuidade do progresso. Temos que estar sempre atentas.

    Por isso jogo o etarismo, dentro e fora do audiovisual, no colo da publicidade. Não é a TV, não é o cinema, não é o teatro – é a publicidade, que não discute quando o anunciante diz que quer rejuvenescer o seu produto. Só que essa fonte inesgotável de juventude é impensável. A gente não tem que exigir essa juventude eterna da mulher. Não faz sentido chegar no auge da sua sabedoria e ter uma lata de lixo te esperando. E mais: o detentor do capital é a minha geração, que compra e paga para os jovens, para os filhos, para os netos. Então, acho que o audiovisual nos dar mais oportunidade, além de ser representatividade, é uma questão de inteligência e estratégia já que é fato que nossa luta está ganhando espaço mediático e engajamento. Não dar uma resposta imediata a essa reivindicação é não se alinhar as demandas do nosso tempo. É vital que sejamos representadas como mulheres ativas, saudáveis, produtivas, consumidoras, autônomas.

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    Eu digo: “não me chame para fazer propaganda de fixador de dentaduras” porque eu tenho dentes fortes e firmes, que são meus. “Não me chame para fazer fralda geriátrica” porque meu namorado tem 46 anos e estou com meus hormônios em dia. Eu tenho um cabelo lindo, bem hidratado, bem cuidado. Nós somos uma geração de 31 milhões de mulheres, que estamos envelhecendo com saúde e vitalidade. Estamos nas academias, ocupando as maratonas. Somos ativas e ponto.

    Raiz no machismo

    O etarismo é universal, mas nunca chega para o homem. Você vê um homem de 87 anos com uma menina de 20: ah, o cara é maravilhoso. É tudo muito simples, possível. O homem não sofre perseguição etarista.

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    Qual é a joia principal que o homem carrega no corpo? É o relógio. Porque ele é detentor do tempo. O acessório principal da mulher é a bolsa. Porque ela carrega o mundo, desde o útero – as dores, o sofrimento, o preconceito, a falta de grana, a falta de oportunidade, o etarismo. É como se o homem tivesse um passe livre.

    É por isso que a matriz de todo mal é o machismo. Homem preto sofre racismo, mas não etarismo. O homem grisalho é charmoso. A mulher grisalha é desleixada. Quem pode mudar isso? Se a mulher de 50+ não se vê representada em lugar algum, alguma coisa tá fora da ordem. Quem é responsável por isso? A publicidade.

    O mais engraçado é falar de inclusão, como se estivesse nos fazendo um favor. Não estão. As coisas mudaram e tem que mudar mais. Muita gente fala: “ah, mas esse discurso está chato, é mimimi, a gente não pode mais fazer uma brincadeira, uma piada” – não pode mesmo. Porque ninguém mais está achando graça da exclusão. É claro que tem um modismo nisso, tem uma cobrança do Ministério Público, que reagiu por conta do apelo público, por conta da pressão popular já que hoje temos o tribunal internet, mas eu sempre digo: não é ser protagonista, é ter protagonismo.

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    A minha Zefa (personagem de “Segundo Sol”, da TV Globo) era uma empregada e acabou a novela dando um tapa na cara do patrão branco, ajoelhado, que era pai dos filhos dela. Não precisou ser protagonista para chegar onde deveria – ali ela deu um tapa no machismo.

    Tem um oba-oba, de algumas atrizes emocionadas que querem chegar a protagonistas pela fama – e não estou falando de cor, de gênero, de raça, só que a demanda não é essa. A reivindicação é equidade, a proporcionalidade. Agora, nesse momento, temos todas as protagonistas das novelas da Globo pretas. Sim, temos. São quatro protagonistas, mas e o resto do elenco? Temos que estar na vigília sempre porque sem ela, a luta não tem continuidade. Agora, as coisas estão assim porque gente está presente, gritando. Eu tenho voz, mas quero amplificar a minha voz. Sempre!

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