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Liberação da maconha ganha terreno no mundo e impõe desafios

Nesta nova realidade, a busca agora é por instituir limites e regras de convivência da sociedade com uma droga até então proibida

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h43 - Publicado em 14 out 2022, 06h00

A caótica Khaosan Road, em Bangkok, dá as boas-­vindas à Tailândia com uma cacofonia sensorial: sol escaldante, lufadas de pimenta em woks fumegantes — e um onipresente fumacê de maconha. Célebre pelo rigor com que pune o tráfico de drogas, a Tailândia reprimiu brutalmente o uso e o comércio de maconha durante décadas, com uma campanha que deixou 3 000 mortos no primeiro ano de vigência, em 2003, até o governo se render ao apelo da indústria do turismo e mudar de lado: desde junho, todos podem frequentar livremente dezenas de lojas com letreiros em neon decorados com folhas de Cannabis, vendendo de cigarros pré-enrolados a balas de goma contendo THC, o componente psicoativo da planta.

Ao legalizar o comércio da droga, a Tailândia se junta ao crescente clube de países que optam por permitir seu uso recreativo como forma de estrangular o tráfico e lucrar com um mercado promissor. Como os demais, também, a liberação tailandesa chegou com um punhado de regras inimagináveis até pouco tempo atrás e que têm como espelho reverso a pioneira Holanda, primeira a liberar a venda e posse, em 1976. Lá, a falha em regulamentar a cadeia da demanda e oferta resultou em problemas que os novatos se esforçam agora para evitar.

CANADÁ - Fronteiras definidas: o país, que educa e conscientiza, permite fumar baseado em espaços ao ar livre não frequentados por crianças — na prática, bem poucos -
CANADÁ – Fronteiras definidas: o país, que educa e conscientiza, permite fumar baseado em espaços ao ar livre não frequentados por crianças — na prática, bem poucos – (Andrew Francis Wallace/Toronto Star/Getty Images)

Uma das medidas presentes em todos os países que reverteram a proibição da maconha é a autorização para o plantio. Na Tailândia, mal liberada a droga, o ministro da Saúde, Anutin Charnvirakul, iniciou a distribuição de 1 milhão de mudas para agricultores suprirem um mercado que, segundo as previsões, estará movimentando 1,2 bilhão de dólares em 2025. Em Nova York, que liberou em abril, o Conselho de Controle de Cannabis já concedeu licença de cultivo a 52 empresas. Na cidade que dormiu na pandemia e despertou mais agitada ainda, a chamada “onda verde” comparece em promoções como a de um restaurante no SoHo que oferece um menu de oito pratos com infusões de maconha por 365 dólares — a “experiência Cannabis” — a galerias de arte que adotaram o método “trague, passe e pinte”, no qual os alunos levam baseados e fumam enquanto aprendem a manusear os pincéis. No Colorado, lar de lounges badalados onde entusiastas compartilham experiências desde 2012, a licença para o cultivo requer sólidos conhecimentos de horticultura. “Uma peça importante da estrutura de legalização é a eliminação do elemento criminoso. Isso tem sido feito com grau razoável de sucesso nos Estados Unidos”, avalia Brad Poulos, especialista em negócios de Cannabis da Universidade Ryerson.

Os novos marcos da maconha legal impõem idade mínima para entrar nas lojas, limites à quantidade de THC nos chamados edibles (balas de goma e outros produtos comestíveis) e restrições de locais onde o consumo é permitido. Na Tailândia, os produtos de maconha incluem óleos, infusões e almofadas terapêuticas usados nos famosos spas, mas a quantidade de THC não pode ultrapassar 0,2% e fumar na rua é uma “perturbação pública” sujeita a multa de 700 dólares. Legalizada em partes do país, na Cidade do México a maconha só deve ser consumida em sete áreas predefinidas. “Os países têm sido cautelosos em permitir o uso em público”, observa Rob MacCoun, professor de direito da Universidade de Stanford.

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CALIFÓRNIA - Menu eclético: maior mercado global de Cannabis, ali plantações promovem visitas de degustação e restaurantes oferecem baseados -
CALIFÓRNIA – Menu eclético: maior mercado global de Cannabis, ali plantações promovem visitas de degustação e restaurantes oferecem baseados – (Eugene Garcia/EPA/EFE)

No Uruguai, o primeiro país do mundo a legalizar a maconha recreativa em todo o território, em 2013, o comércio só é permitido na rede de “farmácias” exclusivas controladas pelo Estado. O fornecimento fica a cargo de clubes de produtores, que começaram com limite de 45 pessoas e 99 plantas e foram se ampliando — hoje são 249 clubes, 50 000 usuários registrados e faturamento de 20 milhões de dólares. Lá os comestíveis seguem ilegais e o tráfico ainda atende 70% dos usuários, o que levou o governo a avaliar a possibilidade de aumentar o limite de THC na maconha nacional, atualmente de 9%.

Considerada o maior mercado legal de maconha do mundo, a Califórnia suspendeu a proibição em 2016 e repassou para os municípios a decisão de permitir ou não o cultivo e a venda de Cannabis, o que abriu espaço para a permanência do tráfico criminoso. Nos locais onde a maconha viceja, cafés oferecem comida, bebida e baseado e agricultores organizam excursões de degustação de Cannabis. Os condados de Humboldt, Mendocino e Trinity formam o “Triângulo Esmeralda”, que espera se tornar para a erva o que o condado de Napa é para o vinho. Segundo o site de negócios Quartz, a venda legal de Cannabis nos Estados Unidos deve crescer 14% ao ano e ultrapassar 57 bilhões de dólares até 2030 — isso contando só os estados onde já é liberada.

Plantada e cultivada ao longo da última década, a nova rota da seda (para os não iniciados, referência ao papel de enrolar baseados) se divide entre um grande contingente de nações que descriminalizaram a maconha (ela continua ilegal, mas quem usa não é punido), aí incluída quase toda a América do Sul, e o punhado que deu um passo adiante e legalizou a Cannabis, caso de Canadá e México, entre outros. Nos Estados Unidos, onde dezenove estados legalizaram e outros doze descriminalizaram, o presidente Joe Biden recentemente anulou as condenações de todos os americanos processados em nível federal por uso ou porte, recomendando aos cinquenta estados que façam o mesmo — gesto visto como um empurrão para a liberação nacional.

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NOVA YORK - Plantando dá: a volta da agitação veio acompanhada da liberação da maconha em lojas e coffee shops, com empresas cadastradas para cultivar e fornecer a erva -
NOVA YORK – Plantando dá: a volta da agitação veio acompanhada da liberação da maconha em lojas e coffee shops, com empresas cadastradas para cultivar e fornecer a erva – (Paul Brown/Shutterstock)

Diante de tamanho avanço do bloco do fumacê, a necessidade de regras claras e eficientes se tornou premente e tem na Holanda o roteiro mais explícito do que fazer e o que não fazer, à luz da experiência acumulada por lá. Nos 46 anos em que se fuma maconha legalmente dentro de 166 coffee shops licenciadas, prevalece na Holanda um paradoxo legal. A legislação permite a posse individual de até 5 gramas e a venda em locais autorizados, mas proíbe o plantio, o que coloca o fornecimento nas mãos do tráfico internacional. Resultado: gangues que se multiplicam e aproveitam a brecha para vender drogas pesadas e fabricar as sintéticas, um mercado que movimenta mais de 20 bilhões de dólares por ano. Diante da disparada da criminalidade, a prefeita da Amsterdã planeja proibir o acesso de turistas a coffee shops, enquanto o governo testa em dez cidades a possibilidade de liberar o plantio de Cannabis.

Para os especialistas, a marcha da liberação da maconha planeta afora só tende a ganhar terreno — segundo estudo da Fotmer Life Sciences, empresa uruguaia de cultivo e venda de maconha, pelo menos oitenta países devem liberar a erva na próxima década. “Depois que o gênio sai da lâmpada, a chance de ele voltar para dentro é muito pequena”, diz Neil Boyd, diretor da Escola de Criminologia da Universidade Simon Fraser, do Canadá, país onde é permitido fumar em qualquer espaço que crianças não frequentam (na prática, bem poucos). Ali, a legalização, em 2018, veio aliada a um investimento de 46 milhões de dólares na educação e conscientização pública sobre a droga. Aos poucos, o mundo vai se adaptando aos riscos e aos limites de um cenário impensável até pouco tempo atrás, no qual usar maconha é opção e decisão de cada um.

Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811

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