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Ken Follett: O fato surpreendente chamado liberdade

Autor britânico, que lança este mês um novo livro, 'A Armadura da Luz', assina artigo no qual reflete sobre arte e literatura como ferramenta de superação

Por Ken Follett
Atualizado em 18 set 2023, 10h57 - Publicado em 18 set 2023, 08h00

A liberdade é uma anomalia. Ao longo da história da civilização humana, a maioria das pessoas viveu subjugada por algum tipo de tirania, sem voto e com poucos direitos, quando muito. Mesmo no mundo de hoje, pessoas livres são uma minoria.
Não chega a ser uma surpresa. Aqueles que detêm o poder raramente se mostram dispostos a abrir mão dele e estão, por definição, numa posição favorável para mantê-lo.

Sendo assim, os momentos da história em que as pessoas lutam por direitos e os conquistam são surpreendentes e intrigantes. Uma tentativa de alcançar a liberdade é sempre uma batalha de fracos contra fortes. E é isso que a torna uma boa história.

Já escrevi cinco longos romances históricos ambientados na fictícia cidade inglesa de Kingsbridge e três outros contando a história do século XX. Juntos, os oito livros formam uma crônica dos últimos mil anos de civilização ocidental. Não foi algo planejado. Apenas vasculhei a História em busca de boas histórias. Agora, porém, após meio século como autor de ficção, posso olhar para trás e ver que a liberdade foi o tema dominante da minha obra.

Tudo começou com a ideia de que uma história poderia ser mais interessante e mais complexa se os dramas pessoais se desenrolassem tendo como pano de fundo uma crise histórica real, como uma guerra ou uma revolução.

Tenho consciência de que alguns grandes autores fizeram o contrário. A sociedade que Jane Austen examinou sob seu microscópio estava envolvida num conflito europeu que durou 23 anos, mas ela jamais menciona Napoleão, impostos de guerra, revoltas do pão, destruição de máquinas ou a turba londrina que apedrejou a carruagem do rei aos gritos de “Pão e paz”. Só que esse nunca foi meu estilo. Todas as melhores histórias são em certo sentido pouco plausíveis, e um cenário autêntico proporciona a impressão de realidade, tornando os conflitos mais verossímeis.

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Comecei escrevendo thrillers, e estudei história militar à procura de ocasiões em que o trabalho de um espião tivesse mudado – ou tido o potencial de mudar – o desfecho de uma batalha. Deu certo. Nos anos 1970, documentos de guerra até então secretos foram liberados para os historiadores graças à regra de trinta anos do governo britânico, e eu li vários livros sobre o complexo plano de ação diversionária bolado para a invasão do Dia D. Os serviços de inteligência alemães foram levados a
aguardar uma suposta invasão na região de Calais e foram surpreendidos quando o exército anglo-americano desembarcou na Normandia, quase 250 quilômetros a oeste. Então escrevi um romance sobre um espião alemão fictício na Inglaterra que fica sabendo desse plano e tenta voltar com essa informação para seu país natal. O livro recebeu o título de O buraco da agulha e foi meu primeiro sucesso de vendas.

Escrevi vários outros thrillers com fundo histórico real e meu interesse pela história foi se ampliando. Mundo sem fim é sobre a Peste Negra, que começou em 1347 e matou pelo menos um terço da população na Europa, no Oriente Médio e no norte da África. A peste foi uma catástrofe… e um divisor de águas na história intelectual europeia.
O romance conta como os habitantes de Kingsbridge sobreviveram à peste, e boa parte dos acontecimentos dramáticos retratam os praticantes de medicina da cidade tentando lidar com a doença. Na Idade Média, a medicina era controlada pela Igreja: todos os médicos eram padres. Sua formação universitária consistia em debater os textos de Hipócrates e Galeno; eles nunca examinavam os pacientes. Um remédio poderia muito bem ser um versículo em pergaminho recortado de uma Bíblia e dissolvido em vinho. Ao longo da Peste Negra (e do meu romance), fica evidente que a Igreja não tem a menor capacidade para ajudar as vítimas da doença. Isso faz declinar a fé das pessoas na medicina religiosa e no sacerdócio de modo geral.
Um sinal dessa desconfiança cada vez maior foi a primeira tradução completa da Bíblia para o inglês, concluída em 1382 por John Wycliffe, estudioso sobrevivente da Peste Negra. Wycliffe foi excomungado, mas tinha dado início a um movimento que nada seria capaz de deter.

Além dos padres, a Idade Média tinha muitos praticantes informais de medicina: cirurgiões barbeiros, bruxas, parteiras, boticários e freiras; todos o faziam apesar da reprovação do sacerdócio. Suas terapias tinham por base a prática e eles desenvolveram técnicas que surtiram algum efeito contra a Peste Negra. Fabricaram máscaras de tecido a serem usadas para cobrir o nariz e a boca; passaram a lavar as mãos com frequência (numa época em que se lavar era, no geral, considerado uma prática prejudicial; alertaram os padres a não chegar perto demais de um doente para ouvir sua última confissão
e a esvaziar o recinto de modo que a pessoa à beira da morte não precisasse sussurrar. Alguns, em especial as freiras, fizeram anotações sobre o seu trabalho e produziram folhetos com recomendações, chamados tratados da peste – como faz a freira fictícia Caris em Mundo sem fim. Outros copiaram esses tratados da peste e acrescentaram tratamentos para outras doenças.

Os resultados constituem os primeiros livros-texto de medicina da civilização ocidental baseados em indícios concretos.
Vejam, portanto, o que aconteceu aqui. Contra a vontade de uma Igreja poderosa, a antiga forma de pensar, baseada na autoridade religiosa, caiu em descrédito e os padres perderam o monopólio da prática da medicina e de certo tipo de verdade. Em seu lugar temos os experimentos práticos, a observação e os registros regulares: os primórdios da medicina moderna, na realidade da própria ciência moderna.

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Esse conflito fez parte de uma controvérsia que durou anos nas universidades da Europa medieval e na elite intelectual islâmica. Um dos lados alegava que a mente humana era demasiado fraca para compreender a criação de Deus e que a única fonte da verdade era a revelação divina. O outro lado defendia que podemos aprender sobre a criação de Deus por meio da observação. No Império Muçulmano, os sacerdotes saíram vitoriosos nesse debate; no mundo cristão, foram derrotados.

No início da Idade Média, os muçulmanos estavam à frente dos cristãos nas áreas da matemática, das ciências e da medicina. Eles haviam preservado os textos da Grécia antiga, ao passo que os cristãos haviam perdido a maior parte (num momento esplendidamente multicultural do século XII, monges ingleses na Espanha traduziram Os Elementos de Euclides do árabe para o latim).

A vitória do racionalismo na Europa e sua derrota no Oriente Médio podem explicar em parte o fato de o Império Muçulmano de modo geral não ter participado da explosão de ciência, indústria e riqueza ocorrida no norte da Europa ocidental.

Isso foi apenas a primeira fase da luta de cientistas e filósofos pelo direito de se basear em evidências e na lógica sem serem cerceados por um governo ou por uma Igreja; uma luta pela chamada liberdade acadêmica, como se diz hoje.

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Essa é apenas uma das histórias que encontrei nos movimentos em prol da liberdade. Escrevi sobre a luta pela liberdade religiosa em Coluna de fogo; pelo direito ao voto das mulheres em Queda de gigantes; e pelos direitos civis em Eternidade por um fio. Meu livro mais recente, A armadura da luz, a ser lançado em setembro, fala sobre a luta dos operários da indústria têxtil pelo direito de se unirem em sindicatos.

Qual o papel especial da ficção nos relatos sobre o nosso passado? Em primeiro lugar, ela educa. Livros de história vendem milhares de exemplares; romances históricos são vendidos aos milhões. Vinte e sete milhões de pessoas compraram Os pilares da Terra e aprenderam como e por que as grandes catedrais da Idade Média foram erguidas.

Mas não é só isso. A imaginação do autor de ficção pode lançar sobre a história luzes que estão fora do alcance do historiador estritamente factual. Um exemplo: nos cinco últimos meses de 1914, quando a Primeira Guerra Mundial estava começando, mais de 1 milhão de britânicos se alistaram voluntariamente nas Forças Armadas. Por quê? Segundo os historiadores, isso se deveu a um arrebatamento patriótico, mas essa explicação não nos leva muito longe. Os historiadores não podem dizer muito mais sem adentrar a seara da especulação.

Já o talento dos autores de ficção reside justamente nessa especulação. Em Queda de gigantes, meu foco é um jovem fictício chamado Billy Williams. Descrevo as pressões exercidas sobre ele para que se aliste ou não e imagino o conflito interno que ele vivencia ao discutir com o pai sobre os erros e acertos dessa guerra específica e das guerras de modo geral. A ficção não substitui a história acadêmica, mas, ironicamente, ela a torna mais real. E mais prazerosa.

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Para mim, escrever histórias nunca foi um meio para alcançar um fim. Faço isso pelo ato em si, não para educar meus leitores, que são pessoas instruídas e não precisam de mim para lhes dizer o que pensar. Tenho paixão por política e uma imensa admiração por A cabana do Pai Tomás e A revolução dos bichos, mas nunca escrevi um romance de cunho político. Minhas opiniões não são nenhum segredo: um dos críticos de Uma fortuna perigosa afirmou que dá para ver que Follett é liberal porque, quando descreve o elaborado vestido de gala que a dama da sociedade usa para ir ao baile, precisa acrescentar que a criada levou a tarde inteira para passá-lo a ferro.

Sendo assim, procuro tomar cuidado. Discussões políticas aparecem aqui e ali em meus livros, e nesses trechos procuro deixá-las em aberto após apresentar os dois lados da discussão: meus leitores saberão chegar às próprias conclusões. Paradoxalmente, o resultado disso é que os conservadores muitas vezes ficam com as melhores falas. Em Eternidade por um fio, numa conversa com o neto liberal, o aristocrata tory Fitz tem a oportunidade de fazer o seguinte comentário ácido: “Nós, conservadores, estávamos certos em relação ao comunismo. Dissemos que não daria certo, e não está dando.”

De toda forma, com raras exceções, a literatura está acima da política. Romances raramente alteram nossas convicções políticas, mas podem influenciar as atitudes e preconceitos que levamos para a política. Essa mentalidade é moldada pelas pessoas que conhecemos e pelas experiências que temos quando jovens e expandido por histórias imaginadas sobre pessoas diferentes de nós. O hábito de ler amplia nossos horizontes. Assim nos tornamos conservadores mais tolerantes ou liberais menos dogmáticos.

Meus livros defendem a liberdade dramatizando a vida de pessoas que a buscam. Em O crepúsculo e a aurora, ambientado por volta do ano 1000 d.C., os personagens lutam por justiça numa época em que o sistema jurídico só existia para servir à elite governante. Os anglo-saxões padecem da infelicidade causada por tribunais corruptos em todas as épocas da história, inclusive a atual.

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O mais perto que cheguei de fazer afirmações explícitas de valores foi em O inverno do mundo. Carla e Frieda, personagens fictícias na Alemanha nazista de 1941, ficam sabendo sobre um “hospital” não fictício para crianças deficientes. Ali elas são executadas, mas os pais são informados de que seus filhos morreram de causas naturais e foram enterrados. Vou concluir com as ponderações de Carla ao refletir sobre o que ela pode fazer em relação a tal atrocidade.

Quem teria coragem de protestar publicamente contra o que estava acontecendo em Akelberg? Carla e Frieda tinham visto tudo com seus próprios olhos e trazido Ilse König como testemunha, mas agora precisavam de um advogado. Não havia mais representantes políticos eleitos na Alemanha: todos os deputados do Reichstag eram nazistas. Tampouco havia jornalistas de verdade, apenas bajuladores sem talento. Os juízes, todos nomeados pelos nazistas, eram subservientes ao governo. Carla nunca tinha percebido como costumava ser protegida pelos políticos, jornalistas e juristas. Sem eles, constatava agora, o governo podia fazer o que bem entendesse, até mesmo matar pessoas.

A liberdade é difícil de conquistar e fácil de perder. Dramatizar essa verdade e transformá-la em ficção tem sido o trabalho da minha vida.

Copyright © Ken Follett 2023

Tradução:  Fernanda Abreu

 

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