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Estudos revelam o assustador impacto da tecnologia nas relações sociais

Isolamento e falta de contato físico: um fenômeno acelerado pela pandemia das redes sociais

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h09 - Publicado em 1 set 2023, 06h00

A solidão, sabemos todos, é parte indissociável do cotidiano humano desde sempre. Não se trata, é natural, de condição recente — se nascemos como seres gregários, se vivemos para nos juntar em famílias e grupos, na paz e na guerra, é certo que viemos ao mundo também para sofrer com o afastamento do outro. De Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta e romancista austríaco de coração despedaçado: “A solidão é como chuva (…) cai como chuva nas horas ambíguas, quando todas as vielas se voltam para a manhã e quando os corpos, que nada encontraram, desiludidos e tristes se separam; e quando aqueles que se odeiam têm de dormir juntos na mesma cama”. A novidade é que a tecnologia, joia da civilização afeita a unir, tem produzido desunião. A internet — e talvez não caiba aqui nenhuma sensação de estupor, em filme que se desenrola já há algum tempo — afasta amigos e cancela amores. Deu ruim, como se diz por aí.

O extraordinário, agora: estudos robustos têm revelado o tamanho do dano. Os smartphones e as redes sociais estimulam o comportamento individualista e relações superficiais. Essa realidade foi ainda mais afetada pelo isolamento da pandemia e pela adoção de regimes de trabalho em home office. Um levantamento recente da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, iniciado em 2021, mostra que quatro em cada dez jovens de 18 a 30 anos não tiveram parceiros sexuais no decorrer de um ano — índice que dobrou na comparação com a década passada. No Japão, a questão virou problema de saúde pública, com a queda da natalidade, preocupação constante do governo. O número de homens que admitem não saber conversar com mulheres aumentou, nos últimos dois anos, de 14% para 20%. Já o índice de mulheres que dizem não ter traquejo para falar com eles subiu um pouco menos, de 16% para 18%.

arte amigos sumiram

Tendo a tela como escudo, contudo, no mar do Facebook, do Instagram, do X (que já foi Twitter) e do WhatsApp, a comunicação segue firme. “Nas redes, interagimos por meio de um filtro, o que constantemente causa a confusão entre interação e socialização”, diz o psicólogo Francisco Nogueira. “Parece estarmos nos socializando, mas a capacidade de resposta e de construção de vínculos cai muito.” O resultado, inesperado: o isolamento, apesar do pipocar frenético de mensagens e alertas. Não é preciso, resuma-se, estar sozinho para se sentir só. E não por acaso, 25% de jovens brasileiros ouvidos em uma pesquisa da VTrends (veja no quadro), braço da operadora Vivo, acreditam que os aparelhos eletrônicos, ali onde vivemos, provocam distanciamento físico.

Estique-se um pouco a corda e o retrato é preocupante: trabalho da empresa de tecnologia Telstra australiana — cujos dados podem ser transportados para o Brasil, inclusive — indica que 54% de pessoas da dita geração Z, de 8 a 23 anos, se autodenominam solitárias. Entre os millennials, que chegam aos 40 anos, o nó é pouca coisa menos apertado, está na casa dos 51%. “Fomos ficando preguiçosos para relacionamentos”, diz a psicóloga clínica, terapeuta familiar e pesquisadora Ilana Pinsky, colaboradora do site de VEJA. “Os relacionamentos são muito compensadores, mas são também cansativos. A maioria das pessoas tem de fazer um certo esforço para a manutenção das relações.”

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A escuridão — apesar da falsa claridade azulada — tende a ser ainda mais dura com as meninas adolescentes, que transformaram as redes sociais em espelho cruel. É uma faca espetada na autoestima, como se a imagem fosse tudo e fossem todas forçadas a parecer magras, de rosto limpo, imunes ao tempo como Dorian Gray. Um relatório do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos indica que três em cada cinco meninas adolescentes relataram se sentir constantemente tristes ou sem esperança, o que representa um aumento de quase 60% em relação a 2011, quando 36% das mulheres jovens disseram se sentir assim. “Talvez seja o caso de as redes terem algum tipo de regulamentação, tal como acontece com a indústria de álcool e tabaco”, arrisca o psicólogo Nogueira. É posição corajosa, que nada tem a ver com censura, mas que já passeia pela mente de especialistas americanos. O surgeon general dos Estados Unidos, Vivek Murthy, algo como um médico referência, autoridade máxima em saúde pública, publicou recentemente um estudo em que detalha o que ele chamou de epidemia de solidão — atrelada e alimentada, inapelavelmente, pela internet. “Enfrentar a crise de solidão é um dos grandes desafios de nossa geração”, disse. Uma das ideias: afastar crianças de até 13 anos das redes sociais.

Parece ingenuidade indicar o óbvio, mas profissionais de psicologia e educação sugerem sair para a rua e abandonar o celular, em busca de alguém que conserte o chuveiro ou troque a fechadura da porta, como se fazia até outro dia. Cabe “desintoxicar” as pessoas, tratar o vício do smart­phone como os do cigarro e da bebida. Aliás, os efeitos da solidão, dentro das barreiras eletrônicas, não se restringem aos impactos psicológicos. Ela pode ser tão letal quanto fumar quinze cigarros por dia, afirma um levantamento da Universidade Harvard. Não é o caso de trazer à tona a reedição de um movimento como o luddismo do início do século XIX. Em 1812, liderados por Ned Ludd — que talvez fosse apenas uma criação que ninguém nunca viu —, trabalhadores ingleses começaram a quebrar máquinas, em protesto contra as inovações que, na alvorada da Revolução Industrial, ceifariam os empregos. A web — e sua filha mais dileta, as redes sociais — não é um mal em si. Sem ela estaríamos ainda mais solitários. Também já não vale achar que o mundo virtual e o real não possam se encontrar.

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REALIDADE - Em museus no mundo todo: a arte nas paredes e os jovens absortos nos reels
REALIDADE - Em museus no mundo todo: a arte nas paredes e os jovens absortos nos reels (Jay Shaw Baker/NurPhoto/Getty Images)

Podem, sim. Lá em 2000, na pré-­história, o psicólogo americano John Suler cunhou uma frase lapidar: “As pessoas tendem a separar a vida on-line da vida off-line”. Esse tempo passou e os universos se complementam, não há como isolá-los. O caminho — em nome das amizades e dos amores — é saber conduzi-los com equilíbrio. Soa estranho tratar com naturalidade cenas do cotidiano como a de famílias ao redor de uma mesa, no almoço de domingo, todos de cabeça baixa, absortos em um mundo que não é aquele. Ou de jovens que, em museus, dão as costas para os quadros, de ombros caídos e olhos atentos apenas ao vaivém de tudo o que pode piscar nos vídeos do TikTok. Vale, como nota de ironia, celebrar uma decisão contundente de Bob Dylan, o compositor e cantor de 82 anos: em sua recente e infindável turnê, ele proibiu a entrada de celulares nos recintos de seus espetáculos. Os aparelhos são lacrados, fechados em estojos e só devolvidos na saída. A solução para a plateia que não pode gravar: olhar para o show, ou então para o amigo ou amor ao lado. Eis uma boa ideia.

Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857

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