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Como as mulheres se tornaram a voz da cultura popular no Brasil

Mesmo com pouco espaço, a presença feminina foi fundamental para a construção do repertório cultural do país

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 abr 2024, 14h09 - Publicado em 28 mar 2024, 17h44

A arte é matriarcal. Muito antes de homens se assenhorarem do tema e distribuírem estátuas e quadros de outros homens em praças e galerias, as mulheresdominavam técnicas aprimoradas. Com o barro, faziam panelas e utensílios usados na vida doméstica e os ornavam com desenhos e adornos. Dominavam a pintura, a tapeçaria, a costura, a escultura, a dança, o canto e todos os demais campos da produção artística. Mas os salões por muito tempo permaneceram fechados à sua presença. Se não podiam ocupá-los, dominavam as ruas

Foi ouvindo os sons das ruas, por exemplo, que Chiquinha Gonzaga (1847-1935) decidiu forjar as raízes de uma música tipicamente brasileira. Entrando em um universo pouco afeito à presença feminina, Chiquinha uniu o clássico ao erudito, levando o som do piano às marchinhas de carnaval. Se negava a assinar suas produções com pseudônimos masculinos, mesmo que isso pudesse significar uma maior abertura ao seu trabalho. Quando o primeiro marido a mandou escolher entre o piano e o casamento, abraçou-se a música. Perdeu a guarda de dois filhos e passou a viver com dificuldades financeiras. Mais tarde, ao casar-se novamente, teve mais uma filha, com quem também perdeu a convivência com o fim do matrimônio. 

A dedicação à arte, incompreensível e impossível para as mulheres daquele tempo, fez com que Chiquinha fosse considerada uma degenerada. Apesar disso, devemos a ela a noção de direitos autorais, demanda impensável no século XIX, mas que ela defendeu com fervor. Encabeçando uma pequena revolução musical, chegou a ser tocada nos bailes da presidência da república. Conta-se que Nair de Teffé (1886-1981), mais conhecida como primeira-dama do que por seu talento para o desenho e a sátira, o que fez dela a primeira cartunista do Brasil, decidiu levar aos salões do alto governo um pouco mais da efervescência cultural brasileira. Na recepção que celebrava o fim do mandato de Hermes da Fonseca (1855-1926), Nair mandou que se tocasse ao violão o maxixe “Corta-jaca”. O som escandalizou parlamentares como Rui Barbosa (1849-1923), que expressou seu descontentamento na tribuna do Senado. “A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba é executada com todas as honras da música de Wagner”, reclamou. 

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Tia Amélia em um raro registro usando as roupas características das “Tias” da Cidade Nova, cujas redes forjaram o samba – (Instituto Moreira Salles/Reprodução)

A elite brasileira não estava preparada para cair no samba. Mas o Brasil, felizmente, costuma se fazer para além das vontades da elite, e não muito longe da tribuna de Rui Barbosa, mulheres pretas quituteiras cozinhavam a base do ritmo. Se o papel de Tia Ciata (1854-1924) já é conhecido, ainda faltam mais detalhes sobre a presença de outras baianas naquele contexto. As tias eram conselheiras, rezadeiras, curandeiras, mediadoras de conflitos, organizadoras de festas e até administradoras dos recursos financeiros. Um grupo considerável se estabeleceu na região da Cidade Alta, no Rio de Janeiro, que ficou conhecida como Pequena África. 

Uma delas era Tia Amélia. Amélia Silvana de Araújo foi uma das baianas que junto com Tia Ciata, Tia Presciliana de Santo Amaro, Tia Gracinda e Tia Verdiana, fundaram os ranchos onde aconteciam sessões de candomblé e sambas. Ela era mãe-de-santo e adorava cantar modinhas, abrindo suas portas para reuniões de sambistas. Quis a história que Amélia fosse mãe de Donga (1889-1974), que teve a visão pioneira de registrar o primeiro samba gravado da história do Brasil: “Pelo Telefone”. A música iniciaria a trajetória que fez do samba um dos principais patrimônios brasileiros. 

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Wic Tavares, primeira intérprete mulher da Unidos da Tijuca (Filipe Menegoy/Reprodução)

Se o samba nasceu de mulheres, ainda há espaços em que essa presença é escassa. Mesmo nas escolas de samba, onde a beleza e a presença feminina costumam ser exaltadas, há territórios pouco abertos. Em 2022, Wic Tavares ocupou um desses lugares inéditos. Ela se tornou a primeira mulher da história da Unidos da Tijuca a ocupar o posto de intérprete principal. “Eu nunca almejei isso porque eu simplesmente não imaginava que era possível”, diz. Apesar do pioneirismo, Wic não foi a primeira intérprete mulher do carnaval. Uma das precursoras, sem dúvidas, foi Tia Surica, ícone da Portela, que em 1966, ao lado de Maninho e Catoni, puxou o samba-enredo “Memórias de um Sargento de Milícias”, de autoria de Paulinho da Viola. Outros ícones também subiram no carro de som, como Clara Nunes, Beth Carvalho, Elza Soares e Leci Brandão. Isso não significa que o posto ocupado por Wic seja comum hoje. No grupo especial de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, não teve uma única mulher entre as intérpretes principais nos desfiles de 2024.

A escassez não para por aí. “Faltam mulheres cantando, conduzindo baterias, comandando escolas…”, diz Wic. Ela não está errada. Além de não haver intérpretes, também não há mestras de bateria. Presidentas também são raras, há apenas cinco em todas as escolas dos grupos especiais, duas no Rio e três em São Paulo. No posto de presidente de honra, ficou apenas Tia Surica, na Portela. Nenhuma outra desfruta da honraria. “Eu realmente espero ver mais protagonismo feminino nas escolas de samba. O lugar de fala no samba, desde seu nascimento, é da mulher”, defende a intérprete. 

Wic diz que ao receber o convite para entoar o samba da Tijuca fez um pedido ao universo: “‘Que esse samba possa mudar minha vida’, eu disse”. A intérprete, que já lançou seu primeiro single, deve lançar um novo projeto no próximo mês. “Eu devo tudo que eu sou ao samba e a força das mulheres no samba”, sintetiza.

*Este texto é o quarto de uma série especial de quatro reportagens que busca resgatar biografias de mulheres pouco conhecidas da história brasileira, relacionando-as às trajetórias de mulheres contemporâneas. As histórias foram publicadas ao longo de todo o mês de março. Leia os outros textos nos links abaixo:

 

 

 

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