Brasil está entre os países com maior número de ataques de tubarões
O mais completo mapa global sobre o assunto ilumina o dramático fascínio pela 'fera' dos mares
Foi um dos mais espetaculares episódios de como uma sequência de problemas de ordem técnica fez brotar uma oportunidade de sucesso no cinema. O tosco peixão mecânico usado para as cenas de horror de Tubarão, filme de Steven Spielberg, lançado em 1975, transformava o pavor em piada. Numa hoje histórica apresentação para os produtores, pouco tempo antes da estreia, os muxoxos se espalharam por uma sala escura em Los Angeles como vírus. Não poderia dar certo. “Aquele pedaço flutuante de poliuretano, madeira e aço não ia assustar ninguém”, diria Spielberg. E então, o diretor e os dois roteiristas — Peter Benchley, autor do livro que inspirara a ideia, e Carl Gottlieb — decidiram tirar o cação de vista, exibindo a água agitada e, eventualmente, a barbatana, ao som de acordes musicais nervosos. Foi o suspense, inigualável, genial como os de Alfred Hitchcock, a imaginação e não a revelação, que atraiu multidões (e as afastou das praias). Em um único fim de semana, a bilheteria superou tudo o que fora gasto nos meses anteriores. Virou um arrasa-quarteirão que só seria superado por Star Wars, em 1977. Muitos outros longas ultrapassariam, ao longo das décadas, os rendimentos de Tubarão — mas foi ele que inaugurou um gênero americano, o “filme de verão”.
E fez-se o medo para sempre, atrelado ao fascínio. Convém lembrar que Spielberg e sua trupe beberam de um receio ancestral — e que a tela grande ampliaria. Os tubarões sempre provocaram pânico, registrados em desenhos da Idade Média, em relatos de aventureiros no século XIX e em jornais no início do século XX. Agora, pela primeira vez, uma instituição de pesquisa, o Florida Museum, divulgou o primeiro grande levantamento global de ataques desde 1580 até hoje — sim, desde o século XVI, depois de minuciosa compilação. O campeão de mordidas contra seres humanos é os Estados Unidos, de longe, com 1 564 eventos. O Brasil ocupa um preocupante quarto lugar, com 110 casos (veja o quadro). Em sua grande maioria, as ocorrências foram no litoral pernambucano (61). Na Praia de Boa Viagem, no Recife, as placas alertam: “Perigo: animais marinhos”. Nos últimos anos, não houve registro de fatalidades, mas de 1992 até 2013 24 pessoas morreram no litoral pernambucano feridas por tubarões-cabeça-chata e tubarões-tigre — que, curiosamente, não são predominantes na região.
O que houve então? Desequilíbrio ambiental. A construção do Porto de Suape, nos anos 1980, impôs a barragem de rios e a redução de estuários, locais de reprodução — o outro ponto mais próximo é o Rio Jaboatão, que desemboca na capital. Além disso, as duas espécies são conhecidas por gostar de seguir grandes embarcações. Some-se um outro nó: a pesca de arrasto resulta em cardumes de peixes descartados, que atraem os tubarões. A solução imediata é simplesmente afastar as pessoas do mar. A médio e longo prazo o caminho é cercar os bichos, entender de onde vêm e para onde vão, e devolvê-los à natureza. Obviamente, não há predileção por surfistas, ao contrário do que sugere o senso comum: o ponto é que eles passam mais tempo longe da praia, onde as ondas se formam, ao alcance dos peixões.
O ranking anunciado tem um duplo efeito: chama a atenção para a comunidade internacional, o que pode acelerar os cuidados também no Brasil, mas ao mesmo tempo alimenta o insólito fascínio pelas mandíbulas que Spielberg eternizou no clássico dos clássicos de sua linhagem. Os tubarões, tudo indica, continuarão a assustar e a atrair interesse. Quem já foi atacado, e evidentemente sobreviveu, não esquece — e agora oferece bons ensinamentos. O empresário carioca João Pedro Portinari Leão, sobrinho-neto do pintor Candido Portinari, velejador de escol, foi atacado por um tubarão-branco em Búzios, no Rio de Janeiro, enquanto praticava windsurf, em 1997. No livro A Isca, relato das horas que antecederam o acidente, mas sobretudo um belo passeio em torno do que pode ser extraído da aventura, ele passa a limpo a experiência. “Minha familiaridade com a água me fez ser atacado, porque eu, de certa forma, estava perdendo o respeito pelo mar”, diz Portinari. Eis a chave do balé entre tubarões e seres humanos: o zelo ambiental, a aproximação cautelosa e cordata.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802