Lançado dois anos depois do clássico de Steven Spielberg, Tubarão, de 1975, o filme Orca, a Baleia Assassina surfou na onda de um gênero em ascensão na época, misturando suspense, terror e vingança da natureza. Com Richard Harris e Charlotte Rampling no elenco, o longa dirigido por Michael Anderson mostra o que acontece quando um baleeiro mata a mãe e o filho de uma família de orcas. O único sobrevivente do grupo de animais, o pai, empreende então uma vingança feroz contra a comunidade de pescadores da região. E dá-lhe susto atrás de susto, dentada atrás de dentada, o duelo do bicho com os humanos. Descontados os exageros ficcionais, os mares da Península Ibérica vivem agora turbulência semelhante.
No fim de maio, um grupo de orcas atacou o Mustique, um iate de bandeira britânica com 20 metros de comprimento, na parte atlântica do Estreito de Gibraltar. Ao abalroarem o barco, inutilizaram o leme e racharam o casco. As equipes de resgate espanholas mais próximas precisaram bombear a água salgada antes de rebocá-lo para um local seguro. Há três anos as autoridades espanholas têm registrado episódios como o do Mustique — foram mais de vinte. O Atlantic Orca Working Group (AOWG), equipe de pesquisadores da vida marinha que estuda orcas na região, diz que os casos foram relatados pela primeira vez em 2020. Naquele ano, o grupo apontou 52 eventos desse tipo. Em 2021, aumentaram para 197 e, em 2022, chegaram a 207. A maioria das interações envolveu embarcações à vela, mas também de pesca, botes infláveis e lanchas — o iate foi uma exceção. Em 2021, o veleiro dos brasileiros Paula Lamberti e Fernando Mendes partiu de Santa Maria, no Arquipélago de Açores, em direção a Lisboa, quando foi atacado e teve o leme danificado. O casal foi resgatado três horas depois.
Dado o espanto emoldurado pelo medo, é natural que se estabeleçam metáforas com o cinema — embora cientistas sérios não recomendem a comparação, simplista em demasia, mais colada a roteiros de Holywood do que à dura realidade. Contudo, o que se sabe ainda é pouco. De acordo com os pesquisadores da AOWG, há um pequeno grupo de cerca de 35 baleias que passa a maior parte do ano perto da costa ibérica para caçar atum vermelho — no cotejo com as orcas da Antártica, que podem atingir mais de 9 metros de comprimento, as ibéricas são menores, com 6,5 metros. Algumas ações de segurança já foram implementadas, como a suspensão da navegação nas cercanias dos assaltos. Pouco, ainda, para tranquilizar moradores e turistas — embora, ressalve-se, as orcas não tenham especial apreço por gente como nós, de carne e osso. Elas gostam é de seus pares.
Principais predadores dos oceanos, são conhecidas por avançarem contra espécies marinhas, como peixes, pinguins, aves, tartarugas, mexilhões e ostras, além de se alimentarem também de outros mamíferos, como focas e baleias. Casos como o de Dawn Brancheau, treinadora do parque Sea World, na Flórida, que em 2010 foi morta pela orca Tilikum, são raros. Investigações mostraram que o comportamento agressivo aconteceu devido às condições degradantes a que os animais eram submetidos em cativeiro. Não é o caso de achar que as orcas ajam emocionalmente, como se reagissem à presença de seres humanos. “Elas simplesmente respondem à presença dos barcos em seu território”, diz o biólogo Alfredo López Fernandez, da Universidade de Aveiro, integrante do AOWG. É ilusão, também, imaginar que sejam assassinas, para ficar no título do filme. Há estragos materiais, mas quase sempre sem sangue. A moral da história: entender os limites da natureza ajuda a fazer do planeta um bom lugar para se viver, até porque não há outro.
Publicado em VEJA de 14 de Junho de 2023, edição nº 2845