Tenho uma história para contar. A questão de gênero vem ganhando espaço, e na linguagem essa batalha anda intensa (não vou nem falar naquela bobagem de que menina veste rosa e garoto veste azul, dita pela ministra). A questão toca fundo quando se usa o plural. Um conhecido fazia aula de balé, lá pelos 16 anos. Era o único rapaz entre vinte garotas. A professora até tentou dizer “meus alunos”. Mas estava tão acostumada que chamava: “Meninas!”. Ele estranhou. Depois, acostumou-se. Impedir a professora como? Monteiro Lobato, por meio da boneca Emília, já observava: numa maioria absolutamente feminina, por que usar o masculino? Sem ser aquele tipo de radical que só sabe vociferar, reconheço que a gente fala de um jeito machista. A linguagem evoca uma supremacia masculina, em que o feminino sempre ocupa o segundo lugar. A mudança começa a acontecer. Várias pessoas que conheço não falam mais todos ou todas. Mas todxs (não me perguntem como se pronuncia, tentei dizer e engasguei). Não é bobagem. Através da linguagem as pessoas formulam, incorporam conceitos, maneiras de ver a vida e de lidar com o próximo. Se a mulher for inferiorizada no modo de falar, as pessoas acreditarão que ela é inferior. Mas a linguagem é mutável, flexível, as palavras vêm e vão. Nossa língua, o português, não surgiu do latim? Qual o problema da mudança, se novos tempos requerem uma nova maneira de falar?
“Se a mulher for inferiorizada no modo de falar, as pessoas acreditarão que ela é inferior. Por que não mudar?”
Parece lógico. Mas virou uma discussão político-ideológica que não sei aonde vai parar. Em novembro do ano passado, a direção pedagógica do Colégio Franco-Brasileiro, do Rio de Janeiro, enviou uma circular propondo que se adotasse a “neutralização” da linguagem. Em vez de “queridos alunos”, poderia ser dito “querides alunes”. Ou “queridos alunos e alunas”. Dizia: “A neutralização do gênero gramatical consiste em um conjunto de operações linguísticas voltadas tanto ao enfrentamento do machismo ou do sexismo no discurso quanto à inclusão de pessoas não identificadas com o sistema binário de gênero”. Veja bem, não era obrigatório. Mas veio uma revoada de pais. Enviaram um manifesto com 85 assinaturas, revoltados, com um anexo repleto de ironias. O colégio voltou atrás. Uma lástima, porque a Terra continua girando. Não é porque os pais são contra a questão de gênero que deixarão de existir alunos (alunes?) trans…
A Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra), em seu novo estatuto, também mexeu nesse vespeiro. Optou pelo abandono da linguagem tradicional, em que o masculino predomina. Adotou a referência a pessoas. Foi o suficiente para vários autores se retirarem, acreditando que seriam chamados de autoras-roteiristas. Ainda há um burburinho em cima disso. Não me importa. A mudança é permanente, acredito nela. Se me chamarem de autor, autora, autore, autorx, tudo bem. Continuo escrevendo do mesmo jeito. Que venham os novos tempos.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720