É missão impossível encontrar um jogador da nossa seleção, no Catar, que não tenha pelo menos uma tatuagem do nome do filho, uma frase inspiradora ou uma imagem – às vezes de gosto duvidoso. Tatuagens já foram encontradas em fósseis humanos que viveram há mais de 5500 anos, e, junto com o piercing e o corte de cabelo, são formas de comunicação através do corpo que mudam segundo a cultura, a religião, o período histórico e a região. Independente de serem expressão de poder, opressão – nos campos de concentração -, ou meramente artísticas e ornamentais, certo é que no mundo contemporâneo a tatuagem se popularizou de tal forma que é difícil encontrar alguém que não seja tatuado.
Certa vez, sabendo que a tradição judaica proíbe tatuagem, e, mesmo assim, vendo inúmeros jovens judeus se tatuando, perguntei ao Rabino Ilan Stiefelmann, responsável pela Sinagoga Lubavitch de Copacabana, se a proibição tinha alguma ligação com os campos de concentração nazistas, onde os judeus tinham a pele numerada, igual a gado, antes de serem torturados e mortos em câmaras de gás. Ele respondeu, numa linguagem informal: – querido Ricardo, se você comprasse um quadro do Claude Monet, colocaria um adesivo nele? Imagino que não. Pois é, seu corpo é um presente divino, infinitamente mais valioso do que qualquer outra coisa.
Tal qual no judaísmo, a Constituição Federal de 1988, nos incisos V, X e XXVIII do art. 5, valoriza tanto a imagem, o corpo, o nome, que os coloca no status de Direitos Fundamentais invioláveis de qualquer cidadão, sob pena de indenização por danos materiais e morais e, em alguns casos, até pena de prisão. Já o artigo 20 do Código Civil determina que “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”
Na última semana os jornais noticiaram dois casos de uso de imagem, sem autorização, em tatuagens. Em Curitiba, o tatuador Weslley dos Santos tatuou, na própria perna, o lindo gol do atacante Richarlison na estreia do Brasil contra a Sérvia, na Copa do Mundo do Catar. Tudo leva a crer que o carismático jogador, tal qual inúmeras pessoas públicas – Neymar, Juliette, Lula, Bolsonaro, Whindersson, Tirulipa, Luva de Pedreiro entre outros – que têm suas imagens tatuadas por fãs, encarará o fato como uma homenagem, de uso privado não comercial, e não adotará qualquer medida judicial para impedir o uso da sua imagem.
Ademais, o STF já pacificou o entendimento de que a pessoa notória, por despertar o interesse e a curiosidade dos fãs, por influenciar na forma de se vestir, dançar, comer, amar… tem sua intimidade e imagem relativizada frente às pessoas anônimas. Sãos os ônus e os bônus da fama. Mas há um limite, que é a proibição de uso comercial da imagem e do nome da pessoa famosa, sem sua autorização.
Em outro caso, uma mãe, com justificada indignação, descobriu que a imagem do seu filho foi copiada da internet e tatuada em um estranho, sem sua autorização. A aludida tatuagem, belíssima por sinal, rendeu um prêmio ao tatuador, mas nem a beleza e o prêmio da obra artística tornam lícita a atitude do artista, pois eterniza num estranho a essa mãe, sem qualquer autorização prévia, o rosto do seu filho, o que é vedado pela Constituição Federal e pelas leis infraconstitucionais.
Aqui não se está falando de uma pessoa pública, mas de um menor cuja exposição o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe e, por isso, conforme os dispositivos legais acima mencionados a mãe e o filho merecem uma indenização por danos morais em decorrência da revolta, indignação, impotência, sensação de invasão, raiva gerada pelo ato do tatuador.
E quanto a remover a tatuagem? Se o procedimento gerar um dano inverso maior, ou seja, uma condição estética que cause humilhação e vergonha, verdadeira tortura ao tatuado, cabe lembrar que o sistema jurídico brasileiro não contempla qualquer tipo de pena draconiana, excessivamente severa, aqui não se aplica a Lei de Talião, o “olho por olho, dente por dente”, ou seja, não se pune com pena de morte ou com amputação da mão daquele que com a mão, por exemplo, matou alguém.
Por Ricardo Brajterman, advogado, mestre em Direito Constitucional, Professor da PUC-Rio