As lições de Biden para enfrentar Bolsonaro
Democratas acertam a transformar a eleição em um plebiscito sobre o caráter do presidente
O sistema bizantino de votação, contagem de votos e recursos judiciais nos Estados Unidos impede uma previsão honesta sobre a eleição presidencial desta terça-feira. A provável vitória democrata no voto popular, no entanto, prova que a estratégia do candidato Joe Biden foi correta.
“Em condições normais, uma campanha está vinculada à resposta do eleitor à pergunta: ‘estou melhor ou pior que quatro anos atrás?’ E mesmo hoje, com todos os efeitos da pandemia do Covid19, a maioria dos americanos se acha em situação melhor que em 2016. Em condições normais, portanto, Trump venceria”, disse o cientista político Cliff Young, presidente da empresa de pesquisa e relações institucionais Ipsos, na semana passada em conferência promovida pela consultoria Eurasia. “Mas essa não é uma campanha sobre a economia. É sobre o coronavírus e como o governo lidou com a pandemia. Os democratas entenderam isso”.
Trump tentou o quanto pode mudar o tema da campanha. Falou da risco econômico das “ideias socialistas” dos democratas, tentou fazer Biden parecer um marionete ora do esquerdista Bernie Sanders, ora da centrista Kamala Harris. No domingo (1°), numa tentativa desesperada de atrair o voto anticomunista da Flórida, o presidente tuitou que Biden seria um marionete de Fidel Castro, o ditador cubano morto em 2016. Trump ainda tentou se posicionar como o candidato da Lei e Ordem durante os protestos do Black Lives Matter, retomou os ataques à administração Obama e, finalmente, usou a carta da suposta corrupção ucraniana envolvido o filho de Biden. Nada colou de verdade. Se Trump vencer não será por nenhum desses subterfúgios. A eleição não é sobre Biden. É sobre Trump e sua condução da Covid-19.
E aí está a primeira lição gratuita da campanha Biden para os eventuais candidatos das oposições contra Jair Bolsonaro, um presidente quase tão intenso quanto Trump: você se adapta às circunstâncias. Biden não tinha nenhum retrospecto na gestão de saúde e sua participação nos debates sobre o programa de seguro saúde conhecido como Obamacare foi marginal. Mas diante da onda, ele surfou.
Campanhas eleitorais têm motores próprios. A eleição brasileira de 1989 foi a da rejeição da velha política, o mesmo tema que dominou corações e mentes em 2018. As de 1994, 2006 e 2010 foram da continuidade. A de 2002 foi a da mudança. As de 1998 e 2014, foram decididas pelo medo da crise que se avizinhava. Os candidatos que melhor compreenderam o espírito do tempo, venceram.
A campanha democrata desde ano foi plebiscitária. Ninguém realmente se esforçou para construir a imagem de Biden como um estadista, mas reafirmar a cada minuto que ele não era Donald Trump. Ser chamado de Sleepy Joe (Joe o dorminhoco) depois de quatro anos de um país refém de um tuiteiro frenético passou a ser um ativo, não uma desvantagem. As tragédias familiares que marcam a trajetória de Biden foram usadas como parte da humanização do candidato, em contraponto à conhecida insensibilidade de Trump. Como disse o próprio Biden, “quanto mais ele (Trump) fala, melhor para mim”.
Para isso, o comando da campanha teve de esconder Biden por quase toda a campanha, tática facilitada pelos cuidados naturais com o coronavírus. Não foi simples. Biden gosta de um holofote. Senador por 40 anos, Biden é um político à moda antiga que fala pelos cotovelos, transforma uma resposta de 2 minutos em 20 minutos e comete gafes uma atrás da outra. Em uma comparação exagerada, mas que facilita a compreensão brasileira, Biden é uma versão americana do ex-senador e vereador Eduardo Suplicy.
Essa tática foi resultado de centenas de pesquisas de grupos que revelaram que o americano médio está exausto com a polarização e a capacidade de Trump de produzir ruído e terremotos durante o todo o dia. Ser chato e previsível tornou-se uma virtude.
Biden tem um grande mérito na condução da campanha que é a sua capacidade de abafar as divergências internas no partido Democrata. Em 2016, Hillary Clinton venceu as primárias contra Bernie Sanders com gols de mão e juiz a favor. A ojeriza da esquerda americana à Clinton é compreensível. Em 2020, Biden trouxe cada um dos rivais a um acordo, no qual a derrota de Trump era a prioridade, mas também incorporou temas das suas campanhas na plataforma. O fato de Biden, aos 77 anos, não ser candidato à reeleição obviamente ajuda.
Por último, há a cobertura da mídia. Mesmo com o óbvio poder das milícias digitais do trumpismo, a TV ainda é um veículo influente na escolha do voto. Em 2016, Trump teve uma cobertura de showman, não candidato, com as emissoras exultantes como suas polêmicas aumentavam a audiência. Enquanto isso, Hillary Clinton era tratada como uma criminosa de guerra. Depois de quatro anos com Trump assediando e ameaçando os principais grupos de mídia e jornalistas, chegou a hora do troco. A cobertura de Biden é inofensiva. As complicadas operações na Ucrânia do filho do candidato, Hunter Biden, recebem atenção mínima. Em compensação, Trump é tratado com o rigor merecido para um presidente com 228 mil mortos por Covid19.
Eleições são circunstâncias e faltam séculos para 2022. Mas o fato de Biden chegar no dia da eleição com chances reais de vencer mostra a correção da estratégia de transformar a eleição em um plebiscito sobre o caráter do presidente.