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Por Kelly Miyashiro
Críticas e análises sobre o universo da televisão e das plataformas de streaming
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Sucesso na Netfix, filme ‘365 DNI’ não é um romance: é abuso maquiado

Entre os mais populares da plataforma, filme polonês aposta em relação doentia e abusiva para conquistar fãs de produções eróticas

Por Amanda Capuano Atualizado em 12 jun 2020, 17h13 - Publicado em 12 jun 2020, 12h12

Com o sol a pino no céu azul da Sicília, um galã de corpo milimetricamente esculpido salta nas águas cristalinas do mar mediterrâneo para salvar sua amada, que tombou da proa de um barco luxuoso. De volta à segurança da embarcação, os pombinhos comemoram o resgate se esbaldando em sexo — intensa e nada pudica, a sequência desenrola-se por todos os cômodos. A cena é de 365 DNI, um filme polonês, adaptado do livro homônimo de Blanka Lipinska, que despontou no primeiro lugar do ranking de mais populares da Netflix no Brasil nesta semana. Conservadorismos à parte, o longa integraria, em tese, a seara dos romances eróticos, não fosse o fato de que não é, nem de longe, um romance — ou pelo menos, não deveria ser considerado como tal dado o fato de que Laura, a bela polonesa salva do afogamento por Massimo, na verdade, foi sequestrada por ele.

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A quem o longa escapa, cabe o esclarecimento de que sequestro, aqui, não é exagero ou figura de linguagem. Massimo Torricelli, interpretado pelo inegavelmente belo Michele Morrone, é líder de uma família influente da máfia italiana que, desde que perdeu o pai assassinado, sonha com a imagem de Laura Biel, vivida com méritos pela polonesa Anna Maria Sieklucka, que não deixa em nada a desejar ao par “romântico” no quesito beleza. Movido por uma obsessão doentia, o mafioso roda o mundo a sua procura e, quando finalmente encontra, decide que a melhor forma de conquistar seu amor é usando de entorpecentes para dopá-la e prendê-la em sua casa. Ao despertar em uma cama tão luxuosa quanto desconhecida, Laura tenta fugir, mas é impedida pelo sequestrador, que lhe impõe uma proposta (se é que pode-se chamar assim, já que ele não lhe dá outra opção): ela tem 365 dias para se apaixonar por ele, se ao final deste tempo nada mudar, pode partir.

Massimo e Laura em cena de sexo no barco (Reprodução/Netflix)

Não fossem os atributos físicos admiráveis do protagonista, o palacete que serve de cativeiro ou os milhões em roupas para a prisioneira — que, contra a sua vontade, vira acompanhante de luxo em festas da máfia, é difícil imaginar que alguém veria romance na história. Mas com o glamour incluso no pacote, parte do público parece considerará-la como um conto de fadas moderno — uma espécie de A Bela e a Fera contemporâneo, que romantiza sequestro e uma aparente síndrome de Estocolmo. Nas redes sociais, há quem atinja o extremo de desejar ser sequestrada por um Massimo da vida real, um verdadeiro desserviço em tempos em que o consentimento é, merecidamente, tão exaltado e discutido, mas não exatamente uma surpresa.

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Que o diga a série You, lançada em 2018 na Netflix e farinha do mesmo saco. Interpretado por Penn Badgley, o protagonista Joe Goldberg virou uma espécie de príncipe culto para parte dos expectadores. Com feições de bom moço e uma bagagem literária digna de admiração, Joe seria realmente encantador, não fosse um psicopata obsessivo que persegue suas musas e faz de tudo para tê-las como amantes — inclusive matar. A romantização do personagem foi tão absurda que Badgley viu-se obrigado a deixar claro nas redes sociais que Joe é um assassino, e que o ponto da série não é fazer ninguém querer ser sequestrado, mas enxergar a loucura para além de um rostinho bonito.

Penn Badgley como Joe Goldberg na “camara de livros” na primeira temporada de You (Reprodução/Netflix)

O mesmo não se pode dizer de 365 DNI, cujo objetivo é, de fato, maquiar a loucura por trás de rostos bonitos e paisagens paradisíacas. Aquém do mínimo de responsabilidade social esperado, o filme distorce qualquer conceito de consentimento. Massimo, por diversas vezes, alerta à Laura que não fará nada que ela não permita — com exceção, é claro, de mantê-la como uma espécie de propriedade, com direito a ações violentas e toques inapropriados, até que atenda aos seus desejos doentios. Se o rapto, por si só, já é problemático para inviabilizar qualquer coisa que se segue, há ainda uma cena em que ele a amarra na poltrona de seu jatinho particular, apalpando-a em lugares inadequados com a intenção clara de “provocá-la”. Em outra passagem, Laura é imobilizada em uma cama saída diretamente dos fetiches de Christian Grey, em Cinquenta Tons de Cinza, enquanto é obrigada a assistir outra mulher satisfazer os desejos sexuais do sequestrador afim de mostrá-la o que, supostamente, está perdendo ao ser tão resistente em doar-se ao algoz.

A essa altura, era de se esperar que cenas como essas, que de tão óbvias tornam-se caricatas, dispensassem problematizações. Mas dado o frisson causado pela relação nas redes sociais, mostra-se importante lembrar que drogar mulheres, mantê-las em cativeiro e tocá-las sem o seu consentimento não é romântico, mesmo quando se é dono de um corpo escultural e milhões no banco. Ironicamente, quem cumpre esse papel no filme é a melhor amiga de Laura, uma mulher expansiva e retratada caricatamente como “doida” que, embora seja voto vencido, mostra-se o mais próximo que o longa ousa chegar da voz da razão ao afirmar que a amiga está presa em uma gaiola de ouro, mas ainda assim, é uma prisioneira — frase simbólica, seja ela com ou sem intenção. Em tempos em que tenta-se, a todo custo, educar mulheres para reconhecer abusos, mesmo que envoltos em aparentes cavalheirismo, é sintomático, e lamentável, que um filme naturalize de maneira tão grotesca tudo o que se vêm tentando combater. Não há romance em um sequestro, e não há beleza no abuso, mesmo que o cativeiro sejam ilhas paradisíacas.

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