Este texto contém spoilers sobre o Especial de Natal do Porta Dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo.
O Natal ainda nem chegou, mas as discussões familiares acaloradas já começaram. Um dos assuntos principais que recheiam essas brigas é o especial natalino do Porta dos Fundos. O enredo de A Primeira Tentação de Cristo, disponível na Netflix, está revoltando diferentes grupos religiosos ao redor do país – que estão fazendo até abaixo-assinados para boicotar o filme e cancelar a assinatura da plataforma de streaming. O filme levou figuras famigeradas como o deputado federal Marco Feliciano a vociferar: “Está na hora de uma ação conjunta das igrejas e pessoas de bem para dar um basta nisso. Unidos somos fortes”, postou o político no Twitter.
Na noite desta quarta-feira 11, realizei uma experiência que comprovou o quanto o assunto divide corações e mentes: assisti ao filme do Porta dos Fundos ao lado de minha avó.
Os três Reis Magos no Especial de Natal do Porta dos Fundos
Dona Maria é uma senhora de 95 anos, católica praticante, daquelas que todos os dias leem uma passagem da Bíblia, rezam o terço e assistem à Rede Vida das 18h até 20h30. Aos domingos, uma mulher da paróquia do bairro vai até a casa de vovó e entrega a hóstia para ela comungar. “Não posso perder a missa e a novena do Padre Robson”, ela diz, sempre animada.
No meio do jantar, contei a ela sobre o especial de Natal, e sobre como o filme estava irritando diferentes vertentes religiosas. Ela rapidamente sacou o celular do bolso e me mostrou o grupo de whatsapp da terceira idade do qual faz parte. Rolando o dedo para cima no smartphone, vovó disse que o especial do Porta dos Fundos era o assunto principal do dia entre as senhorinhas. “Falaram que retratam Jesus como gay” – indagou, aterrorizada. “Ave Maria, isso é pecado. Essas pessoas não têm noção do que fazem.”
Eu, na inocência dos meus meros 23 anos, fiquei assustado com a ira das velhinhas (no grupo dela, a mais nova deve ter em torno de 75 anos). De um estalo, convidei vovó para assistir à atração da Netflix comigo. Fiquei interessado em analisar se a turma do Porta de fato extrapolou os limites do tolerável para pessoas religiosas. De início, ela se recusou. Mas logo sentou na cadeira de balanço (seu lugar cativo na sala) e encarou a sessão.
A trama do especial satiriza uma parte específica da Bíblia (Evangelho de Lucas 4,1-13). O início do ministério de Jesus movido pelo Espírito Santo, quando ele se recolhe em jejum de 40 dias no deserto e é tentado por Satanás.
No longa de 46 minutos, Maria (Evelyn Castro) prepara uma festa-surpresa de aniversário para Jesus (Gregório Duvivier), que está fazendo 30 anos e convida todo o bairro – entre os convidados especiais estão os três Reis Magos e Deus Pai (Antonio Tabet). Jesus, que está há 40 dias no deserto “fazendo um mochilão”, volta com um “amigo”, Orlando (Fábio Porchat). Neste ponto da história, Dona Maria já esboçava carões e beições de reprovação diante da TV.
A festa de aniversário de Jesus é recheada por brigas de família, fofocas e grandes revelações capazes de causar climão. Jesus fica sabendo que não é filho de José (Rafael Portugal), mas sim de Deus – que se mostra uma figura safada, que fica tentando seduzir Maria o tempo todo. “Ele sempre soube disso, ele nasceu para ser filho de Deus” – grita minha avó, indignadíssima a essa altura.
O ápice de vovó se dá quando Jesus bebe um chá alucinógeno e se encontra com divindades de outras religiões – como Buda, Shiva, Jah e até mesmo um ET – e confessa a eles, num misto de terapia coletiva, que tem medo de não ter capacidade para ser filho de Deus. “Para mim, chega. Isso é uma heresia, um crime”, esbraveja dona Maria. “Com Deus não se brinca. Vai ter troco, Deus não deixa as coisas assim não”, continuou. Aquilo já era demais para vovó. Ela se levantou do sofá e se retirou da sala, subindo as escadas para o quarto com passos duros.
Mas eu continuei vendo o filme. A festa de aniversário de Jesus sofre nova reviravolta quando Orlando se transforma em um “boy lixo”: assume a forma de Lúcifer e reivindica sua posição como, também, filho de Deus. “Agora é a vez do filho tomar o poder. A mamata acabou”, diz Lúcifer, em uma alusão marota às peripécias dos filhos do presidente Jair Bolsonaro.
O especial é curto, peca em algumas piadas e situações, mas no geral tem tiradas e piadas inteligentes. Parafraseando o que Deus Pai fala no especial em certo momento: “Vai com a mente aberta” ao assistir à produção. Desculpe, vovó, mas eu cometi o pecado de me divertir.