Documentários sobre seitas religiosas reforçam gênero de crimes reais
Séries como 'Colônia Dignidade' e 'Heaven's Gate' desvendam a máquina de manipulação por trás de cultos que culminaram em tragédia
No dia 26 de março de 1997, foram encontrados, em uma casa de San Diego, Califórnia, 39 corpos. Não se tratava de uma chacina, mas sim de um suicídio em massa, o maior até hoje na história dos Estados Unidos. Parte da seita religiosa Heaven’s Gate (Portal do paraíso, em tradução literal), o grupo pregava uma confusa mistura de crenças cristãs com teorias conspiratórias sobre alienígenas. Ao deixar para trás seus corpos mundanos – chamados por eles de recipientes – estes fiéis acreditavam que se encontrariam em uma eternidade de bonança, a bordo de uma gigantesca nave extraterrestre.
Por mais absurdo que o discurso pareça ser, ele revela seu apelo na minissérie Heaven’s Gate: The Cult of Cults, da HBO Max. Em quatro episódios, cenas antigas dos líderes e seguidores da seita se misturam com depoimentos de ex-participantes e especialistas de diversas áreas, que destrincham o modo de agir e de envolver pessoas promovido pelo culto, iniciado nos anos 70.
O documentário, que chegou ao Brasil com a estreia da plataforma de streaming, no fim de junho, engrossa a onda de um subgênero do prolífico filão de séries e filmes sobre crimes reais – nele, porém, o crime se disfarça de religião ou autoajuda manipuladora com doutrinas questionáveis, culminando, invariavelmente, em tragédia.
O mais recente (e assustador) lançamento dessa seara é Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile, lançado este mês pela Netflix. São seis episódios que acompanham a tenebrosa colônia criada por Paul Schäfer, um médico e líder religioso nazista, que fugiu da Alemanha rumo ao Chile ao ser acusado de pedofilia. A partir de um discurso bíblico e anti-comunista, ele abrigou especialmente menores de idade em um rancho numa área remota do país. Lá, cerceou a liberdade de seus seguidores e praticou os mais tenebrosos crimes, de tortura e escravidão a tráfico de armas e assassinatos. Um detalhe interessante do documentário é a dificuldade de ex-membros de se adequarem ao mundo fora dos limites da colônia. Tanto que alguns continuaram vivendo no local, mesmo após a prisão e morte do líder, em 2005 e 2010, respectivamente.
Apesar dos discursos bastante distintos, em comum, estes cultos se valem de um fortíssimo teor de manipulação, que atinge pessoas de variados perfis, a maior parte delas de classe média, com estudos em dia, e solitária. O modelo se repete na escandalosa seita sexual secreta que funcionava sob o nome de NXIVM — pronuncia-se “nexium”. Com um discurso motivacional, que pregava o sucesso, o palestrante de autoajuda Keith Raniere criou um império à base de trabalho escravo de seus seguidores. A farsa começou a ruir quando surgiram os primeiros ex-membros dispostos a denunciá-lo por abuso sexual. A história deu origem a duas séries documentais recentes, The Vow, da HBO, e Seduced: Inside the NXIVM Cult, no Starzplay.
Um exemplar notório do filão, e que puxou a fila lá em 2018, é a minissérie Wild Wild Country, da Netflix. A trama acompanha a ascensão do guru indiano Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho (1931-1990), que nos anos 80 conquistou os Estados Unidos com uma doutrina que mesclava religiões orientais, misticismo, meditação e liberdade sexual. Ao instalar uma comunidade que atraia multidões em Oregon, o peculiar grupo provocou o ódio de moradores locais – o que destrinchou uma sequência de episódios violentos, quando os participantes da seita criaram uma milícia e instauraram uma guerra com os locais — estes já armados até os dentes.
Trama parecida ocorreu em Waco, cidade no Texas que foi palco de uma desastrosa ação do FBI que, ao cercar a comunidade de seguidores da religião batizada de Ramo Davidiano, liderada por David Koresh, acabou atacando inocentes após vários dias de negociações frustradas. A história foi base para documentários e filmes, mas um bom exemplar, que mostra com mais detalhes os acontecimentos dentro do alojamento — informações que requerem um pitada de encenação —, é a série Waco, disponível no Globoplay.